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Mais um 4 de dezembro se passou em Salvador e o dia de Yansã e Santa Bárbara foi comemorado como sempre. A despeito do crescimento dos casos de ódio religioso na cidade este ano, mais de 80% na comparação com 2018, naquele dia o centro histórico da cidade foi tomado pela cor vermelha, igual a todos os anos. É uma festa de mulheres, embora muitos homens participem.
O dia de Yansã/Santa Bárbara é o dia de celebrar o feminino, mas sobretudo a experiência feminina das mulheres das classes populares: das mulheres que trabalham, que nem sempre podem estar perto dos filhos e filhas, daquelas que disputam o protagonismo em espaços considerados tradicionalmente masculinos. Yansã, na mitologia Yorubá, é a mulher de vontade própria, do enfrentamento, da coragem, da inconformidade.
Santa Bárbara, que nasceu na Turquia, é celebrada na mesmo dia e também tem um sentido muito particular na celebração afro-católica, por sua coragem de enfrentar o pai ao se converter ao catolicismo. A fé daquela que mais tarde se tornou santa provocou a ira do pai, que cortou a cabeça da própria filha após entregá-la às autoridades romanas para ser torturada. Conta a lenda que quando a cabeça de Bárbara rolou no chão, um grande trovão rasgou no céu, iniciando uma tempestade. Da mesma forma, para nós da religião dos orixás, é assim que Oya Yansã se manifesta: quando o céu se abre em raios e trovões, quando as tempestades acontecem, em dias de ventania.
É por isso que, no 4 de dezembro, as mulheres andam pelas ruas vestindo vermelho, carregando em si uma alegria e um atrevimento incomum. Celebrar Oya Yansã é celebrar a liberdade feminina e por isso, na sua festa, as mulheres saem sozinhas ou em grupos de mulheres, riem alto, falam alto, dançam, bebem, expressam sua sensualidade e ao mesmo tempo sua altivez, contrariando regras sociais que, cada vez mais, insistem em impor um lugar submisso às mulheres.
Em meio à festa e à alegria, fico aqui pensando nas mulheres que foram raios de Yansã na Terra e que pagaram com a própria vida pela sua inconformidade guerreira, pelo seu desejo de liberdade, pela sua alegria do viver. Penso em Marielle Franco, penso em Helen dos Santos Moreira, e penso também em nossa mais nova ancestral, Elitânia de Souza da Hora, que morreu de feminicídio .
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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