Coluna

Luciana Brito

Um feliz Natal preto, bem preto!

23 de dezembro de 2019

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Como tratar de representatividade negra e de cotidiano real numa festa em que, mesmo do ponto de vista mercadológico, pessoas negras ainda são invisíveis? 

Neste período natalino, fala-se muito em humanidade e a importância do amor e respeito a todos os seres humanos. Para as pessoas as quais a humanidade não é algo dado, e sim fruto de lutas, Natal também é época de afirmação.

O coletivo Ouriçado Produções, formado por um grupo de artistas negras e negros baianos, trouxe uma “bem-humorada” e interessante paródia das chamadas natalinas da Rede Globo. Chamo de “bem-humorada” por ser irônica e porque, de certa forma, ridiculariza a harmonia irreal do elenco da emissora, que poderia se passar na Noruega ou no Leblon, ou em qualquer lugar onde negros não existam.

Voltando à paródia do coletivo Ouriçado, denuncia-se o horror da vida das pessoas negras, que festejam o Natal ao mesmo tempo em que convivem com uma realidade de genocídio, de desemprego, de abuso e violência policial. A única certeza na encenação é que “a festa é luta e a batalha é nossa”, além das pessoas parceiras que quiserem juntar-se às pessoas negras na sua constante luta por reconhecimento da sua humanidade.

Sendo o Natal, na maioria das vezes, uma celebração que pode se deslocar do seu significado cristão, que é o nascimento de Cristo, e se materializar na celebração da cultura europeia e da branquitude, para nós, pessoas negras da cidade mais negra fora da África, as celebrações natalinas podem parecer um paradoxo.

Em vez da neve, estamos no início do verão e das festas de rua que antecedem o carnaval. Além disso, buscamos, cada vez mais, estar perto da praia, o que é bem diferente do inverno rigoroso que compõe o clima dos filmes natalinos que vamos ver na televisão. A única coisa que está em consonância com os filmes produzidos no hemisfério norte é a decoração natalina da maioria dos shoppings da cidade, sobretudo os mais elitizados. Lá estão expostos os “bons velhinhos” brancos e barbudos, que se parecem com os avós de quase ninguém por aqui.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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