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A palavra “milícia” chegou a nós quase inalterada, vinda direto da Roma Antiga, onde se escrevia “militia” e significava, simplesmente, exército, ou forças armadas. Tanto é que ela serve de raiz para o adjetivo “militar”. Na origem, portanto, miliciano é o exato sinônimo de militar. A marchinha carnavalesca que tenho ouvido muito pelas ruas – “doutor, eu não me engano, o Bolsonaro é miliciano” -, portanto, não tem nada de surpreendente. Ninguém ignorava que o capitão fosse um capitão.
Claro que o sentido das palavras mudou pacas entre os tempos de Júlio César e os de Jair. No seu uso mais moderno, “milícia” deixou de ser exatamente a mesma coisa que “exército”, apesar de haver muito em comum entre as duas palavras: ambas designam um contingente de soldados armados. Só que “exército” é quando o soldo dessa turma é pago pelo Estado, enquanto “milícia” geralmente se refere a um exército privado. O uso mais comum da palavra é para designar grupos de autodefesa dos cidadãos: como por exemplo quando os moradores de uma certa região, sem poder contar com a defesa estatal, se juntam e se armam para se proteger juntos.
E é por isso que acho que não dá mais para usar essa palavra para dar nome à tentacular organização que parece ter infiltrado todo o Estado do Rio de Janeiro, e muito mais Brasil afora, e que tem relação com um monte de crimes, inclusive a execução da vereadora Marielle Franco. Essa organização com certeza é algo muito maior e mais sinistro do que aquilo que aparece descrito no dicionário, no verbete “milícia”. Numa coluna recente , sugeri que a palavra certa seja “máfia”.
Afinal, milícia é uma palavra quase neutra, como exército. Há maus exércitos, mas também há bons. A Alemanha, por exemplo, tinha um horrível, que executou milhões de pessoas, torturou, maltratou, assaltou, demoliu bairros inteiros, cometeu crimes contra a humanidade que talvez não sejam nunca esquecidos. Hoje, essa mesma Alemanha, escaldada por ter sido governada por um cretino militarista que revelou o pior que o país tinha, tem um exército excelente, eficaz, tecnológico, sob controle social, respeitador dos direitos de cada soldado, que é incentivado a discordar dos seus superiores sempre que julga que suas ordens são ilegais ou desumanas.
É um pouco mais complicado dizer que haja boas e más milícias no Brasil porque, pela lei, estamos falando de algo sempre ilegal. Exércitos armados privados não são permitidos pela legislação porque o monopólio da violência aqui é do Estado – a lei até permite que agentes de segurança e vigias de transportes de valores, além de moradores rurais, portem armas, mas não que formem exércitos. Ou seja, uma milícia, no Brasil, é sempre em algum grau criminosa.
Denis R. Burgiermané jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. É roteirista do “Greg News”, foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010.
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