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Denis R. Burgierman

O que Moro fez é comum

17 de julho de 2019

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Só que, se queremos viver numa democracia digna do nome, precisa deixar de ser

As dúvidas sobre a autenticidade das mensagens reveladas pelo The Intercept vão aos poucos se esgotando : sim, pelo jeito é verdade que Sergio Moro, Deltan Dallagnol e grande companhia disseram mesmo aquelas coisas. Resta então uma outra discussão: é grave? Há quem defenda que não – a começar pelos próprios suspeitos. Que, diante da grandeza do escândalo de corrupção revelado pela Operação Lava Jato, os “equívocos” de Moro seriam um mal menor. Afinal, infrações desse tipo, da parte de juízes, são bem comuns neste país.

Vamos por partes então: são mesmo comuns? Olha, eu acho que são, sim. Outro dia mesmo contei aqui sobre um acordo secreto entre juízes e promotores no Rio de Janeiro para nunca soltar ninguém acusado de roubo na cidade, mesmo quando não há nenhum indício de autoria. A advogada que me contou sobre esse esquema tinha um cliente preso por engano, porque ele deu azar de ser negro e pobre num ônibus que foi assaltado por outros negros pobres – acabou sendo levado junto por um policial que não foi com a cara dele. O juiz, sem qualquer evidência contra o réu, nem escutou os argumentos da advogada – ficou mandando mensagens pelo Whatsapp enquanto ela argumentava. Manteve o rapaz preso, decretando sua demissão, o declínio de sua saúde, a ruína financeira de seus pais desempregados, o estigma para sempre de um rapaz absolutamente inocente.

Como escrevo muito sobre políticas de drogas, converso sempre com ex-detentos e com advogados criminais. Histórias de juízes mancomunados com promotores desrespeitando o sagrado direito à defesa e botando gente na cadeia independentemente das provas acontecem todos os dias no Brasil, várias vezes ao dia. A falta de justiça da Justiça está expressa já no ambiente da corte: muitas vezes o juiz senta-se ao lado do promotor – “o réu não tem como saber quem é quem”, me conta o advogado Pedro Abramovay, estudioso do tema –, enquanto o advogado de defesa fica um degrau abaixo, inferiorizado já pela arquitetura. “A Justiça criminal é uma máquina de condenar, sem muito interesse em fazer justiça”, diz Abramovay. Escuto muito por aí gente racionalizando que é bom que seja assim, para passar a mensagem de que este não é o país da impunidade.

Para mim, passa uma mensagem bem diferente: a de que este é um país que não acredita na lei. As regras que juízes – Moro entre eles – desrespeitam diariamente não são meras formalidades atrapalhando a ação da Justiça. Elas são garantias de que este país segue regras e de que as mesmas regras valem para todo mundo. A independência dos promotores e a imparcialidade dos juízes são conquistas da civilização. Atropelá-las, como Moro e Dallagnol fizeram, com uma agenda política, é voltar à Idade Média, quando o poder podia tudo, e a autoridade do rei, do legislador e do juiz se concentrava toda nas mesmas mãos. Fácil imaginar que naquele tempo o inimigo do rei não tinha muita chance de sair inocentado de um julgamento.

Sim, o que Moro e Dallagnol fizeram é comum. E, sim, é grave. Gravíssimo. É grave também que eles não achem grave: indica o grau de desrespeito pela lei por parte de quem jurou defendê-la. O que a Vaza Jato revelou foi, sem tirar nem pôr, corrupção, que é o desvio da função pública (usar instituições públicas para atender interesses privados). Se é comum que a Justiça seja corrupta, há algo errado com este país.

Denis R. Burgiermané jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. É roteirista do “Greg News”, foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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