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Passados mais de oito dias do assassinato de Agatha Felix, ainda está na minha cabeça o desabafo do avô, Aílton Felix, cuja fala eu gostaria de analisar cuidadosamente: “Não foi o filho dele, nem a filha dele, não, foi a filha de um trabalhador. Ela fala inglês, tem aula de balé, tem aula de tudo, era estudiosa. Ela não vivia na rua, não. Agora vem o policial aí e atira em qualquer um que está na rua. Acertou minha neta. Perdi minha neta. Não era para perder ela, nem ninguém”.
A fala do senhor Aílton Felix descreve muito bem as estratégias de famílias negras e pobres das comunidades, onde vivem no meio do fogo cruzado. Diferentemente do que famílias de classes privilegiadas possam imaginar, as “favelas” não são conglomerados de meninos e meninas “perdidas”, que vagam pelas ruas, não estudam, não recebem o cuidado e a atenção das suas famílias e que, de uma forma ou de outra, não terão serventia alguma para a sociedade.
Desde sempre, pessoas negras e pobres entenderam que a educação seria o caminho para a vida mais digna dos seus filhos e filhas. A falta de herança e de parentes influentes, o fato de não fazerem parte de uma poderosa rede de relações que podem, com um telefonema, garantir empregos bem remunerados, fez com que pais e mães pobres, assim como tias, vizinhas e avós, repetissem, geração após geração, que estudar é fundamental para “ser alguém na vida”.
Ainda no século 19, algumas famílias negras ou indivíduos negros conseguiram acessar educação por entenderem que somente o acesso à instrução lhes garantiria autonomia, sobrevivência e respeitabilidade numa sociedade escravista.
Assim fez Antônio Pereira Rebouças , conselheiro do Império, quando, ainda na primeira metade do século 19, financiou os estudos dos seus filhos, André e Antônio, na Europa. Luiz Gama tornou-se um grande intelectual negro pelo seu brilhantismo no direito e Teodoro Sampaio , o único da sua família a receber instrução, tornou-se engenheiro por meio do investimento educacional feito pela família que lhe apadrinhou, a mesma que havia sido proprietária dele mesmo e da sua família.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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