Coluna

Luciana Brito

Quem morre enquanto os homens exercem seus podres poderes

27 de abril de 2020

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Nos dias em que Manaus abria valas comuns para seus mortos, a tragédia rapidamente deu lugar à disputa de poder

Vários eram os assuntos que eu poderia tratar no texto da coluna desta semana. Vivo agora numa cidade em que é obrigatório o uso de máscaras em áreas externas. Pessoas sem máscaras serão proibidas de entrar em ambientes públicos. Aos 41 anos, essa é a primeira vez na vida que uso máscaras. Quando eu via imagens na TV em países asiáticos nos quais pessoas já fazem uso de máscaras eu me perguntava como deveria ser viver assim, vendo 40% do rosto das pessoas. Bem, agora chegou o momento de eu mesma descobrir.

Ainda ontem, vi uma menininha de trança usando uma máscara branca que tinha no centro a imagem de uma flor. Foi quando pensei em esperança e em como as pessoas, sobretudo as das classes populares, encontram formas de sobreviver, achando (ou inventando) alguma beleza ou poesia nas tragédias. Simular uma adequação à nova realidade não deixa de ser uma forma de sobreviver.

Percebo que, na falta de um governo em que confiem, ou melhor, que lhes transmita confiança e amparo, as pessoas se reinventam e criam alternativas de solidariedade e apoio às pessoas que precisam de ajuda. Assim como a maioria das lives, as iniciativas mais interessantes vêm de pessoas que não são celebridades. Minha amiga Graciete Santos é artesã e criou uma campanha para fabricar máscaras de tecido que serão distribuídas numa comunidade pobre em Campinas, cidade vizinha ao maior foco de infecção por coronavírus do país, o município de São Paulo. Em Salvador, existem diversas iniciativas que promovem doações: entre elas há a campanha da cooperativa de catadoras e catadores de papel e um fundo emergencial de doações criado pela @rededemulheresnegras da Bahia. Enfim, são tantas iniciativas de organizações, coletivos e até mesmo pessoas que, individualmente, doam sabão e produtos de limpeza, além de oferecer outros serviços gratuitos para quem precisa.

As universidades públicas todos os dias anunciam iniciativas que respondem às necessidades da sociedade: produzem máscaras de proteção, álcool em gel a baixo custo, sabão. Isso sem falar nos hospitais universitários e nas pessoas da área de saúde formadas por essas instituições de ensino. Pesquisadoras e pesquisadores promovem uma verdadeira corrida nos laboratórios de pesquisa em busca de uma cura ou de um remédio já existente e que seja eficiente no combate à covid-19. Cientistas dos Estados Unidos, na semana que passou, ainda tiveram uma tarefa mais árdua: desmentir o presidente da República, Donald Trump, que afirmou (ou sugeriu) que injeções de água sanitária no corpo humano poderiam ser uma medida eficaz no combate ao coronavírus. Após a declaração, serviços de atendimento a emergências de Nova York registraram um aumento tanto no número de emergências dessa natureza — pessoas de fato experimentaram injetar ou ingerir água sanitária — quanto em pedidos de informações para checar a plausibilidade da sugestão do presidente.

Cientistas das áreas das ciências humanas procuram decodificar as implicações da pandemia na sociedade, os impactos políticos, econômicos e sociais, além de oferecer informação de qualidade à população. Nosso maior desafio, na minha avaliação? Combater uma avalanche de fake news, de teorias da conspiração inúteis que só expõem a população ao risco, sobretudo a mais pobre, deixando-a mais confusa.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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