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Alicia Kowaltowski

Números não mentem, senhor presidente

17 de junho de 2020

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Os verdadeiros dados da covid-19 não permitem refutar a realidade e maquiar a condução despreparada do combate à pandemia pelo governo federal

Nos últimos meses temos acompanhado números obsessivamente. Olhamos para quantidades de testes, índices de contaminados, curvas com variações de casos no tempo e curvas com médias móveis de números de óbitos. No Brasil, todos os dados que vemos trazem enorme tristeza. Completamos 100 dias do registro do primeiro caso de covid-19 com a indigna distinção de ser o país que mais diagnostica novos casos no mundo, da ordem de 26 mil por dia.

Números são interessantes, embora raramente paremos para pensar exatamente o que são: um conceito abstrato, representado por símbolos, usado para descrever medidas, ordem e quantidade. Em nossa cultura, aprendemos esse conceito e o ato de contar tão cedo que nos causa espanto saber que há tribos amazônicas isoladas, como os Pirahã, que não possuem palavras para números , e que, como resultado, têm dificuldades em discernir quantidades. É quase impensável para nós imaginar um mundo sem poder quantificá-lo.

De fato, números são intrínsecos ao dia a dia de cientistas, e não somente nas ciências exatas. Mesmo nas áreas biológicas e humanas precisamos quantificar fenômenos e compará-los para poder transmitir o que são e explicá-los. Por exemplo, é claramente demonstrado que quanto menor a circulação de pessoas, menor a transmissão do novo coronavírus. Essa constatação demonstra a efetividade de políticas de isolamento físico, associada a demonstrações de que o vírus se encontra em quantidades mensuráveis no ambiente, que é eliminado por pessoas infectadas, e que a proximidade com pessoas portadoras é aquela que leva à infecção. Tudo isso parece bastante óbvio no momento, mas só o é porque essas demonstrações já foram ampla e numericamente feitas.

Precisamos de números também para testar possíveis tratamentos. Numa doença como a covid-19, da qual a vasta maioria das pessoas melhora com o tempo sem nenhum tratamento, possíveis intervenções têm que ser monitoradas em grandes grupos de pessoas para verificar se medicamentos são seguros e eficazes. Nesse tipo de estudo, de modo geral, um número substancial de pacientes estudados melhora a confiabilidade dos resultados. Foi por isso que, em 22 de maio, quando saiu um artigo na prestigiosa revista médica The Lancet sobre os efeitos da hidroxicloroquina e da cloroquina na covid-19, a comunidade científica inicialmente considerou definitivos seus resultados, indicando que essas drogas não somente deixavam de contribuir para a melhora, mas pioravam a progressão da doença. O estudo envolvia mais de 96 mil pacientes, em cerca de 700 hospitais diferentes no mundo.

Mas foi justamente por causa desse número espantoso de casos estudados que especialistas em epidemiologia começaram a desconfiar do trabalho. De fato, logo transpareceu que a empresa que coletou os dados nos quais as conclusões do estudo foram baseadas não teria maneira de levantar esses números de modo correto, e também não os disponibilizou publicamente para que pudessem ser verificados. Consequentemente, no início de junho o artigo foi retratado, ou “despublicado”, indicando que não possui mais validade . Deixe-se claro que isso de maneira nenhuma indica que hidroxicloroquina ou cloroquina são eficazes no tratamento de covid-19, pois há um número vasto, independente e claro de outros estudos demonstrando sua ineficácia .

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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