Coluna
Laura Carvalho
Uma regra fiscal insustentável mina sua própria credibilidade
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Diante da dificuldade de enviar ao Congresso um Orçamento para 2021 que satisfaça o duro limite imposto pela PEC do teto de gastos, o governo parece obstinado a encontrar as melhores maneiras de burlar a regra. Embora a tentativa de utilizar fundos extra-teto para a preservação de investimentos em obras públicas ou o financiamento do programa Renda Brasil ainda enfrentem resistência no Congresso, as manobras lançam luz sobre um problema muito destacado na literatura econômica sobre regras fiscais: a rigidez excessiva pode acabar tirando a própria credibilidade da regra. O debate sobre a revisão ou não do teto de gastos no Brasil está associado, portanto, ao dilema entre perder a credibilidade por manter uma regra sabidamente insustentável, realizando cada vez mais manobras para cumpri-la, ou perder a credibilidade por alterá-la antes do tempo previsto.
Desenhar regras fiscais que sejam ao mesmo tempo simples, exequíveis e capazes de sinalizar a sustentabilidade da dívida pública aos investidores, reduzindo assim o prêmio de risco e o custo de financiamento do governo, não é tarefa fácil. Conforme apontaram pesquisadores do FMI (Fundo Monetário Internacional) em um Staff Discussion Note publicado em abril de 2018 , a dificuldade de cumprimento de regras rígidas que estabeleciam um limite para a diferença entre gastos e arrecadação do governo a cada ano (como no caso da nossa meta de resultado primário) em meio a situações imprevistas de crise e perda de receitas levou muitos países a sofisticarem seus sistemas de regras. Uma forma de conferir-lhe maior flexibilidade se deu por meio das chamadas cláusulas de escape e outros dispositivos. Ao mesmo tempo, para evitar uma flexibilidade excessiva que pudesse comprometer a sustentabilidade fiscal no longo prazo, esses países criaram um arcabouço institucional para garantir o cumprimento dessas regras (conselhos fiscais independentes, sanções e mecanismos de correção).
No entanto, esses novos sistemas acabaram tornando as regras demasiado complexas e difíceis de operar, além de não terem aumentado as chances de cumprimento. Por isso, a nota sugere que os sistemas sejam reformados de acordo com alguns princípios básicos. Primeiro, as regras têm de ser simples e consistentes com um objetivo de médio prazo para a trajetória da dívida pública. Os autores deixam claro que não se trata de estabelecer um limite para a dívida que constranja o orçamento anual e sim um alvo que sirva para guiar a fixação das regras operacionais.
Segundo, para evitar que essas regras operacionais sejam demasiado rígidas ou, ao contrário, demasiado complicadas, o texto sugere o uso de cláusulas de escape simples e transparentes, bem como uma ênfase maior em regras que limitem o crescimento dos gastos públicos em detrimento das metas de resultado, sujeitas a flutuações imprevistas e fora de controle na arrecadação. Na prática, um teto para o crescimento de gastos permite que as receitas caiam em situações de crise sem forçar um corte de despesas, contribuindo para conferir um papel estabilizador à política fiscal. Terceiro, a garantia do cumprimento das regras deve priorizar a criação de custos de reputação para quem não as satisfaz ou benefícios para quem as cumpre, em vez de sanções formais, consideradas pouco eficazes.
Ou seja, o estabelecimento de um teto de gastos como meta operacional é considerado um avanço em relação a uma meta rígida de resultado primário com caráter pró-cíclico como a brasileira, que faz com que o governo tenha espaço para gastar mais quando a economia menos precisa e menos quando vem a crise. O problema é que, além de não ter substituído a meta de resultado primário, que continua vigorando e levando à necessidade de contingenciar ou cortar recursos frente às sucessivas frustrações na arrecadação, o desenho específico do teto aprovado em 2016 tirou justamente a maior vantagem atribuída a esse tipo de regra: a flexibilidade. Isso porque o teto inclui despesas previdenciárias que crescem ao longo do tempo, comprimindo cada vez mais a margem para outros itens do Orçamento. Na prática, esse desenho impede que os gastos sejam mantidos em uma situação de crise ou em qualquer outra, pois a cada ano haverá maior pressão para cortes de investimentos públicos, gastos sociais e todo o resto. Essa flexibilidade existiu excepcionalmente em 2020 pela aprovação do decreto de calamidade pública e da PEC do Orçamento de guerra, mas em 2021 a economia ainda estará em frangalhos e não restará nenhum espaço para uma política fiscal anticíclica.
Laura Carvalhoé doutora em economia pela New School for Social Research, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e autora de “Valsa brasileira: Do boom ao caos econômico” (Todavia). Escreve quinzenalmente às sextas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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