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A eleição municipal de 2020 em São Paulo reedita uma velha estratégia eleitoral: a bandeira de que gestores de esquerda tendem a colapsar as contas públicas das prefeituras. Legítima, essa preocupação deve entretanto ser encarada com bastante ceticismo. Primeiro, é verdade que gestões mais à esquerda pioram a situação fiscal? Segundo, o aumento do endividamento do governo federal em anos recentes é um bom exemplo do que poderia ocorrer a nível municipal após essas eleições?
A primeira pergunta está longe de ser nova, e aparece de forma recorrente em debates eleitorais ao redor mundo. Foi justamente por conta desse tipo de senso comum que um artigo publicado em novembro de 2019 analisou a trajetória de endividamento dos governos norte-americanos e de um painel de países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) desde a Segunda Guerra Mundial. Nele, os pesquisadores concluem que as administrações mais à direita são mais propensas a aumentar a dívida do que as mais à esquerda. Retirando o efeito do nível inicial de endividamento herdado por cada gestão, tendências demográficas, condições macroeconômicas e choques associados a guerras, o estudo sugere que a passagem de um governo republicano para um democrata nos Estados Unidos reduz a dívida federal em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) em 1,8% em média. A explicação é que os republicanos tendem a reduzir impostos e gastar mais com defesa (e menos com outros itens), provocando um resultado líquido que acaba deteriorando as contas públicas, ao mesmo tempo em que reduz o tamanho do Estado. Em um painel que inclui 24 países da OCDE, os resultados são similares: uma alternância para governos de partidos mais à esquerda implica em uma redução no endividamento de 0,6% a 0,7%.
No Brasil, um estudo publicado em 2008 estimou o papel da ideologia do Executivo e do Legislativo no resultado fiscal de governos estaduais entre 1986 e 2005. A conclusão é que a legislação que reestruturou as dívidas dos estados nos anos 1990 fez com que os governos de esquerda passassem a apresentar melhores resultados fiscais, ao contrário do que ocorria anteriormente. Já a Lei de Responsabilidade Fiscal melhorou a situação deixada por todos os governos indistintamente, mas fez com que os cargos legislativos da esquerda passassem a apoiar resultados melhores.
A pergunta mais relevante a ser considerada pelo eleitor no que tange às contas públicas municipais talvez seja: diante de restrições orçamentárias semelhantes, quem realizará as escolhas mais próximas das suas?
Ainda que nenhuma generalização seja possível para os municípios brasileiros sem a realização de um estudo econométrico amplo, cabe destacar que desde a redemocratização as três prefeituras com inclinação de esquerda em São Paulo não causaram nenhum colapso nas contas públicas, muito pelo contrário. A gestão de Luiza Erundina , eleita em 1989 pelo PT, viu sua tentativa de cobrar alíquotas progressivas de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) ser frustrada por uma alteração na base de cálculo imposta pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o que acabou reduzindo a arrecadação prevista em 400 milhões de dólares. Ainda assim, a ex-petista, que herdou um déficit de 36%, encerrou o ano de 1992 com um déficit de apenas 6%.
Fernando Haddad, também eleito pelo PT, enfrentou a mesma resistência ao reajuste do IPTU, mas conseguiu reduzir substancialmente o nível de endividamento da prefeitura por meio da alteração do indexador da dívida de São Paulo negociada junto ao governo federal. Além disso, graças à criação da Controladoria Geral do Município, Haddad desmontou um esquema de máfia do ISS (Imposto sobre Serviços) que gerava prejuízos de R$ 500 milhões à cidade. Embora tenha se deparado com a queda na arrecadação associada à recessão de 2015-2016, a gestão Haddad expandiu investimentos em obras na cidade e ainda assim deixou R$ 5,34 bilhões em caixa para seu sucessor, dos quais R$ 3 bilhões não estavam comprometidos com despesas de curto prazo.
Embora Marta Suplicy tenha sido acusada de deixar um déficit de R$ 1,9 bilhão nas contas do município, o Ministério Público Federal concluiu em decisão de 2008 que a gestão petista da ex-prefeita deixou um saldo de R$ 91 milhões para seu sucessor. Vale lembrar que a herança recebida por Marta não foi das melhores: seu antecessor, o direitista Celso Pitta, foi condenado à prisão no chamado “escândalo dos precatórios”, que envolveu justamente a emissão de títulos da dívida em mercado e a utilização do montante para a realização de despesas com finalidades distintas das permitidas por lei.
Para além de evidências históricas, cabe ressaltar que a flexibilidade e os riscos associados à gestão das contas municipais não são comparáveis aos da esfera federal. Afinal, uma prefeitura não tem a capacidade de emissão de dívida pública e gestão macroeconômica (fixação de juros, taxa de câmbio ou emissão monetária) do governo federal. Além disso, no caso de uma prefeitura, os limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal dão pouca margem para uma elevação das despesas desalinhada com a evolução da arrecadação. É verdade que há formas de burlar os limites impostos por lei: por exemplo, o limite para os gastos com servidores ativos, inativos e terceirizados estabelecido em 60% da arrecadação (Receita Corrente Líquida) não incide sobre o pagamento de funcionários contratados pelas chamadas Organizações Sociais para a prestação de serviços públicos.
Deixando de lado o uso de artifícios como esse, que certamente prejudicam a transparência da gestão orçamentária, e assumindo que os diferentes candidatos irão cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, a ideologia parece afetar muito mais a definição de prioridades na alocação dos recursos disponíveis do que o equilíbrio no orçamento. Nesse contexto, a pergunta mais relevante a ser considerada pelo eleitor no que tange à administração das contas públicas municipais talvez seja: diante de restrições orçamentárias semelhantes, quem realizará as escolhas mais próximas das suas na destinação desses recursos?
Bom voto a todos.
Laura Carvalhoé doutora em economia pela New School for Social Research, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e autora de “Valsa brasileira: Do boom ao caos econômico” (Todavia). Escreve quinzenalmente às sextas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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