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O Ministério da Economia “está sendo forçado a reconciliar sua identidade ‘Chicago Boy’ de livre mercado com a necessidade de vultosa intervenção governamental”, avaliou o jornal britânico Financial Times em reportagem sobre o Brasil publicada em 28 de abril. Operação difícil, posto que não se trata apenas de uma expansão da dívida pública, mas sim de uma pandemia em que o papel do Estado na sociedade e na economia foi trazido à tona de forma cristalina.
Primeiro, ficou nítida a necessidade de o Estado atuar na proteção social dos mais vulneráveis por meio de mecanismos de redistribuição. As rápidas transformações do mercado de trabalho ao redor do mundo nas últimas décadas, com perda de empregos industriais, fragilização das relações trabalhistas e volatilidade cada vez maior da renda dos trabalhadores autônomos e informais já haviam levantado a necessidade de se estabelecer um piso mínimo para a renda dos mais vulneráveis, financiado pela tributação de altas rendas e patrimônios.
Em meio ao colapso trazido pela pandemia e à necessidade de se preservar vidas sem impedir a subsistência dos trabalhadores mais vulneráveis, tais medidas assumiram um papel central. No Brasil, onde a recessão de 2015-16 e os anos de estagnação desigualitária que a sucederam contribuíram para que atingíssemos um grau recorde de informalidade no mercado de trabalho, a implementação da renda básica se mostrou ainda mais essencial.
O segundo papel do Estado que a pandemia contribuiu para evidenciar é o da prestação de serviços públicos. Embora ainda tenhamos enormes desigualdades no acesso à saúde, não dá nem para imaginar a catástrofe que seria o quadro atual sem a existência do SUS (Sistema Único de Saúde). A Assembleia Constituinte de 1988 cristalizou uma escolha democrática em favor de serviços universais e gratuitos de saúde e educação com repercussão inevitável no tamanho do Estado. Mesmo com todos os ganhos possíveis de eficiência, não se pode desejar uma oferta de serviços suecos com uma carga tributária afegã. Em termos per capita, que é uma medida relevante quando se leva em conta o grande número de pessoas atendidas nas redes públicas de saúde e educação, nossa carga tributária é quatro vezes menor do que a média de países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A pandemia deixa claro que o problema não é o tamanho da carga, que está vinculada à necessidade de ofertar serviços, e sim sua distribuição injusta.
A terceira dimensão de atuação do Estado desnudada pela pandemia é a área de infraestrutura, hoje representada no exemplo concreto do saneamento básico. No Brasil, apenas 66% dos domicílios têm acesso à coleta de esgoto. Na região Norte esse percentual cai para 21%. A água encanada, apesar de beneficiar 85,8% das moradias, também apresenta fortes disparidades regionais. Os investimentos em infraestrutura têm retornos incertos e de longuíssimo prazo, o que costuma torná-los pouco atrativos para o setor privado, sobretudo em regiões mais pobres. Não à toa, tais investimentos sempre contaram com uma alta participação do setor público no Brasil e no mundo.
Laura Carvalhoé doutora em economia pela New School for Social Research, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e autora de “Valsa brasileira: Do boom ao caos econômico” (Todavia). Escreve quinzenalmente às sextas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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