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A valorização súbita dos sistema públicos de saúde, das redes de proteção social, das políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico e, de forma geral, do papel do Estado na alocação dos recursos da sociedade tem levado alguns analistas a considerar essa crise como um golpe fatal no neoliberalismo ou, quem sabe, no próprio capitalismo. Para muitos, a trágica pandemia ajudaria a parir um belo mundo novo, bem mais justo e sustentável.
Não é, no entanto, o que prevê Dani Rodrik em artigo recente : o economista e professor da Harvard Kennedy School considera que essa crise apenas reafirmará as visões de mundo de cada um, no que identifica como um super viés de confirmação. De fato, o que temos visto no Brasil é que, enquanto alguns acreditam que a crise abre caminho para a taxação de grandes fortunas, outros entendem que o urgente é o corte de salários de servidores públicos, e alguns ousam sair às ruas para denunciar mais uma conspiração globalista contra o presidente da República. Por isso, para Rodrik, o mais provável é que a covid-19 apenas reforce tendências anteriores, como a crise da globalização, o fortalecimento do autoritarismo populista ou a dificuldade da esquerda em desenhar programas atraentes para a maioria dos eleitores.
É bem provável que seja assim. Mas as transformações trazidas pela pandemia podem alterar as bases sobre as quais tais tendências vão operar e, portanto, seus resultados. Nesse sentido, é fundamental compreender como essa crise pode ser um vetor relevante de concentração de renda, riqueza e poder.
Sobram evidências de que a pandemia não é tão democrática quanto muitos gostam de fazer parecer. Sim, ela está prejudicando a vida de todos, mas os mais pobres sofrerão muito mais os seus impactos na saúde e na economia. É o que mostram os dados de outras pandemias. No caso da gripe espanhola, uma pesquisa publicada na revista médica The Lancet sugere que as taxas de mortalidade foram até trinta vezes maiores em regiões mais pobres. A pandemia de 2009 do H1N1 não foi tão diferente: um estudo de 2013 apontou uma taxa de mortalidade 20 vezes maior em países da América do Sul do que na Europa, por exemplo. Ou seja, tudo indica que os países com a menor dotação de recursos para enfrentar a crise atual, sobretudo se levarmos em conta a enorme fuga de capitais para países ricos em meio à incerteza nos mercados financeiros globais, sofrerão os efeitos mais devastadores da pandemia.
Mas não são apenas as desigualdades globais que vão aumentar. Dentro de cada país, os mais vulneráveis também estão mais sujeitos aos impactos da crise econômica e de saúde pública. Além da perda de renda e trabalho em meio ao que deve ser a maior queda anual do PIB de nossa história, a base da pirâmide está mais sujeita à contaminação e a desenvolver casos mais graves da infecção por covid-19. Isso porque o risco de contaminação é elevado pelo número de pessoas que dividem o mesmo dormitório, pelo uso de transporte público, pela falta de saneamento básico e pela dificuldade de manter o isolamento sem reduzir sua renda para abaixo do nível mínimo de subsistência. Já a gravidade dos casos e, portanto, a probabilidade de óbito, depende da existência de comorbidades (doenças crônicas associadas) e do acesso à saúde. Em estudo preliminar , mostramos que, no Brasil, a proporção de pessoas com comorbidades associadas à covid-19 aumenta significativamente entre os menos escolarizados (54% para quem só frequentou o ensino fundamental, ante 34% para quem frequentou o ensino superior, por exemplo). Além disso, o número de leitos de UTI no SUS é quase cinco vezes menor do que na rede privada.
Laura Carvalhoé doutora em economia pela New School for Social Research, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e autora de “Valsa brasileira: Do boom ao caos econômico” (Todavia). Escreve quinzenalmente às sextas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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