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Em 1918, o Brasil foi invadido pela gripe espanhola. A peste, como era então chamada, vinha de longe; ao que tudo indica, havia contaminado um quartel militar nos EUA e depois rumou para a Europa, onde fez mais baixas do que o próprio conflito bélico que assaltava o continente desde 1914. A doença não matou mais na Espanha; o país levou a pecha e o nome por mera circunstância histórica. Não havia entrado na Grande Guerra e, diferentemente dos países envolvidos no embate, não tinha preocupação em manter sigilo e a censura sobre a “estranha doença” que assolava as tropas de ambos os lados da contenda. Por isso mesmo ganhou, inadvertidamente, o nome da doença.
No Brasil ela chegou num navio, o Demerara, que foi deixando um rastro de contaminação por todos os lugares por onde passou: Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos. Das regiões costeiras rumou para o interior atingindo em cheio São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Ganhou então velocidade e alcançou grandes e pequenas cidades, municípios e tribos, sem dó nem piedade. A espanhola era ligeira e cruel, matando as pessoas contaminadas em questão de dias.
Nunca se está preparado para uma pandemia. Mas nos idos de 1918 faltava de tudo, até porque, com a República, o serviço médico fora federalizado. E diante da inoperância e malemolência das autoridades sanitárias, recorreu-se, e muito, à medicina popular. No Rio se recomendava canja de galinha, em São Paulo a caipirinha e, em Porto Alegre, foi proibido o chimarrão.
A população apelou também para os famosos “destronca peito”, para as alfazemas, para o uso de limão, coco, sal de azedas (utilizado normalmente para a limpeza e desinfecção), cebola, vinho do Porto, fumo de rolo, infusões e para os xaropes milagrosos que prometiam curar tudo ao mesmo tempo. A cachaça e o caldo de galinha, para alegria de alguns adoentados, e da população em geral, também entraram na lista de produtos que prometiam combater a doença.
Enquanto isso, como as autoridades não se entendiam acerca dos tratamentos a serem dispensados, sobravam remédios e muita sabedoria popular. O produto mais empregado e valorado era o sal de quinino, entendido na época como um “santo remédio”. O quinino, ou sulfato de quinina, era um alcaloide de gosto amargo e inodoro, em geral encontrado na forma de pó branco, que guardava funções antitérmicas e analgésicas. Medicamento normalmente utilizado para tratar arritmias cardíacas e a malária, o produto estava longe de ser inócuo e não poderia (ou deveria) ser tomado sem prescrição de um especialista médico.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
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