Coluna
Luciana Brito
Aqui é o fim do mundo: prova de humanidade é respeitar Iku, a morte
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Na última semana do mês de março, o Brasil atingiu um recorde ainda maior do que todos aqueles outros assustadores comentados aqui anteriormente. Foram quase 4.000 mortos por covid-19 em 31 de março, mesmo dia no qual um documento oficial comemorava o “aniversário” do golpe militar, evento histórico que também nos remete à morte. Nada foi dito sobre essas milhares de vidas perdidas pela covid, pois naquela mesma semana vivíamos uma crise política que girava em torno das reais prioridades do governo federal: a eleição de 2022.
Fico atenta a essa pedagogia oficial que nos ensina a negligenciar a vida, e o que é mais grave: de forma irresponsável, não temer a morte. Desde o início da pandemia, a naturalização da morte tem ensinado ao povo brasileiro que o medo de morrer, em vez de mecanismo de autopreservação, é um sinal de fraqueza. A finitude da vida, ainda que dolorosa e/ou precoce, passou a ser vista como algo trivial. Desafiar a morte passou a ser visto como um ato de bravura, como se a morte provavelmente pudesse se acovardar.
O discurso que defendia o enfrentamento à pandemia da covid na base do “peito aberto” mostrou-se uma falácia. Setores das elites brasileiras trataram logo de arrumar um jeito de furar a fila de vacinação ao mesmo tempo que há uma grande pressão para que a iniciativa privada tenha autorização para vender a vacina para os endinheirados – essa sim muito zelosa da importância das suas vidas. Assim, enquanto marcham nos automóveis pedindo o retorno às atividades presenciais e vociferam pela volta à “vida normal”, esses setores se organizam em filas clandestinas, na calada da noite.
No mês de julho do ano passado, quando a marca diária de mortos estava na metade do que temos hoje, a minha colega de Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a psicóloga doutora Jeane Saskya Tavares, escreveu um brilhante texto que tratava sobre o luto. De acordo com a professora Jeane, o descaso com os corpos negros e pobres durante a pandemia revela uma política de desumanização que já estava em curso. Segundo ela, a política genocida empregada durante a pandemia é mais uma vertente do genocídio da população negra, que já mata através do uso da violência, mas que agora mata sob o argumento do “acidente inesperado”, representado por uma pandemia que não podia ser evitada ou controlada.
Outro efeito perverso dessa política, segundo Tavares, é que ela nos ensina a desvalorizar e desprezar a nossa própria vida, e das pessoas semelhantes a nós. As mortes consecutivas, as valas comuns, a falta de assistência médica, os óbitos que hoje ultrapassam os 300 mil, tudo isso faz com que nos acostumemos com essa forma de morrer sem luto, sem tristeza, sem sentimento de perda e sem adeus. Essa seria uma estratégia de sobrevivência para acordar todos os dias e seguir adiante. Sem refletir sobre essas perdas, por falta de sensibilidade, de tempo ou de empatia, sem chorar os mortos e sem o medo de ser o próximo, somos um povo mais frio, individualista e até mesmo perverso. O luto, segundo a autora, é fundamental para a afirmação da importância da nossa existência, da nossa humanização.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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