Coluna
Luciana Brito
A reforma eleitoral, o racismo e a ameaça do voto acabrestado
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Nas primeiras horas desta terça-feira (10) tive notícia de que estava programado para acontecer um desfile militar que de fato acabou acontecendo poucas horas antes da análise da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que determina a adoção do voto impresso. Ao que tudo indica, os blindados e o armamento que será exposto sugerem um ato de intimidação enquanto deputados votarão a tal PEC, já considerada inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal), e tem por objetivo mudar as regras eleitorais, sendo a maior das mudanças a adoção do voto impresso.
A última vez no século 21 que vi uma cartela de votação foi nos Estados Unidos, e claro que me surpreendi. Tratava-se de uma cartela relativamente grande através da qual eleitoras e eleitores votavam num dia da semana qualquer, sem folga do trabalho. O voto se dava da seguinte forma: fazia-se um furinho numa cartela no quadradinho correspondente ao candidato ou candidata escolhida. Lembrei-me das cartelas de bingo, que era o que aquilo parecia, ao meu ver. Naquele momento, senti até mesmo orgulho de ser brasileira, pois durante um vago instante, a urna eletrônica utilizada nas eleições do Brasil dava-me a sensação de vir de uma grande potência mundial, do ponto de vista da ciência, tecnologia e democracia também. Mal saberia eu que, anos depois, a tal “cartelinha do bingo”, ou melhor, o voto impresso e ultrapassado, seria o projeto político “retrô” de muita gente.
Mas este texto não é sobre uma divergência entre o velho e o novo, pois defender o direito ao voto é muito mais que isso. Trata-se de racismo eleitoral.
A reforma eleitoral, sorrateiramente, traz vários problemas graves que visam promover um recuo ainda maior da participação política da população negra, das pessoas pobres e de tudo aquilo que não representa as grandes oligarquias brasileiras. A reforma privilegia o voto daqueles candidatos que têm mais recursos, acabando com a proporcionalidade, além de limitar a já restrita participação das candidaturas femininas, enfraquecendo também a reserva de recursos eleitorais voltados para candidaturas de pessoas negras, homens ou mulheres. Mas o racismo da reforma eleitoral não para por aí. Tão grave quanto todas as coisas já ditas acima, quero dedicar mais atenção à questão do voto impresso, que poderá reinstalar no Brasil aquilo que ficou conhecido na história como “voto de cabresto”.
O voto de cabresto era uma prática que, segundo os livros de história, era muito empregada no Brasil durante o período da primeira República, embora saibamos que essa prática durou muito mais. Pessoas que viveram no interior do Brasil, e ainda vivem, têm notícias de pessoas poderosas que, por meio de falsas promessas e muita coerção, faziam, e ainda fazem, com que as pessoas pobres barganhem seu voto em troca daquilo que deveriam ter por direito. Logo, o voto de cabresto se alimenta fundamentalmente da pobreza. Consultas médicas, fardamento escolar, cimento, remédios, emprego, ajudas mensais, dinheiro, dentre outras tantas coisas eram trocadas por voto.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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