Coluna

Carlos Bezerra Júnior

Aumentando o som da fala ou melhorando o argumento?

20 de agosto de 2021

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O grito e a forma virulenta de colocar um ponto de vista tem muito mais a ver com imposição, opressão e violência do que com a arte de convencer, persuadir e até de gerar confiança

Conta-se que após uma palestra de um ilustre convidado, alguém encontrou o esboço do seu discurso na mesa. Em um determinado ponto tinha uma observação escrita com destaque: “neste ponto, aumentar o tom da voz porque o argumento é fraco”.

E quando eu ouvi essa história pela primeira vez, me perguntei: os argumentos se tornam fortes quando se aumenta o tom de voz? Claro que não. O grito e a forma virulenta de colocar um ponto de vista tem muito mais a ver com imposição, opressão e violência do que com a arte de convencer, persuadir e até de gerar confiança.

É bem possível que a observação feita em um pedaço de papel por aquele ilustre palestrante guarde grande semelhança com os tempos que temos vivido hoje, e talvez, mais ainda, com o recente episódio do pavor que se espalhou no Afeganistão após o Taleban assumir o poder com a retirada das tropas americanas do país.

Lemos e ouvimos muito falar do fundamentalismo islâmico, mas não podemos isolar esse problema a uma determinada religião. No mundo protestante, por exemplo, esse conceito nasceu no início do século 20, logo após o inusitado júri que entrou para a história como o “Julgamento do Macaco”. Um professor em uma escola dos EUA, ministrando uma aula sobre ciência, explicou para seus alunos a teoria da evolução, o que deflagrou uma “guerra cultural”. Mas em nosso tempo, cada um ou cada grupo tem um fundamentalismo para chamar de seu, em qualquer campo, inclusive o fundamentalismo econômico e o fundamentalismo político. Há para todos os gostos, aqueles que simplesmente não conseguem dialogar, dentro ou fora do contexto religioso, e impõe a sua própria verdade de maneira agressiva, fechando-se em sua interpretação doutrinária. Acho importante ressaltar isso para não nos restringirmos a um único tipo de fundamentalismo (o religioso) e nem dentro dele, a uma única religião (Islamismo).

Dito isso, no entanto, é fato que o fundamentalismo, de forma estereotipada, é, invariavelmente, associado à religião, e mais especificamente ao Islã. Não à toa, claro. Atos terroristas e atitudes aterrorizantes são perpetradas em países dominados por homens que querem impor o fundamentalismo islâmico e ganham longas reportagens que correm o mundo todo.

Embora o Taleban tenha dado sinais de que estaria mais aberto a apoiar os direitos das mulheres no Afeganistão, a história comprova que, no poder há 20 anos, o movimento militante proibiu as mulheres e meninas de frequentar a escola, atacou violentamente seus direitos, assassinou quem discordava deles, perseguiu e torturou seus opositores. Como bem lembrou nesta semana, a prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai, que sofreu literalmente na pele a força bruta do Taleban quando tinha 11 anos de idade: “não posso deixar de pensar em minha própria infância. Quando o Taleban assumiu minha cidade natal no Vale do Swat, no Paquistão, em 2007, e logo depois disso proibiu as meninas de receberem educação. Cinco anos depois, quando eu tinha 15 anos, o Taleban tentou me matar por falar abertamente sobre meu direito de ir à escola”. São essas as recordações trágicas do passado escrito pelo movimento fundamentalista. E nada foi feito até aqui que mudasse a imagem que deixaram, ou seja, não há razão para simplesmente acreditar que eles passaram a ter uma visão mais humanitária das relações. O que faz o Taleban ser temido são suas mãos sujas de sangue, e dizer que não repetirá as ações lastreadas pelo ódio não afasta o medo dos que vivem no país. Fosse diferente disso, não teríamos assistido às cenas assustadoras de pessoas se pendurando em um avião militar que decolava de Cabul.

Após a palestra de um ilustre convidado, alguém encontrou o esboço do seu discurso. Havia uma observação escrita com destaque: neste ponto, aumentar o tom da voz porque o argumento é fraco

O Taleban continua dominado por fundamentalistas. E qual a conotação da palavra fundamentalista? A primeira palavra que vem associada a ela é intolerância, seguida de violência. Para mim, o fundamentalismo só existe entre aqueles que estão perdidamente atrelados à inflexibilidade de opinião, sendo um pobre sujeito que nunca terá a oportunidade de aprender mais nada sobre nada mais. Se a ele não é dado poder, o mal que ele é capaz de produzir é significativamente reduzido, mas experimente dar poder a quem vive em seu próprio mundo de criações e verdade, e verá o quão maléfico pode ser a sua atuação, porque o fundamentalista não é apenas um ignorante, mas é um ignorante capaz de ir às últimas consequências. E repare: não existe um fundamentalista capaz de sorrir genuinamente. A vida de um fundamentalista é marcada pelo ódio, pela intolerância, pela vontade de guerrear e matar todos que pensam diferente dele.

É bem possível, como dizia o escritor israelense, Amós Oz que aliás define bem o fanático como sendo um grande altruísta que quer salvar você, mas se não conseguir, vai matá-lo que estejamos vivendo o século do “conflito entre os fanáticos e nós”. Se olharmos à nossa volta, veremos que a concorrência entre os fundamentalistas e os tipos de fundamentalismos vem crescendo.

No Brasil, existem grupos criminosos agindo em determinadas cidades, com o pretenso argumento de atuarem em uma “missão divina”, determinando o domínio geográfico de uma determinada religião, e para isso, depredam e queimam tudo o que for contrário ao que apregoam. E como as cosmogonias divinas desde os tempos mais remotos sempre estiveram em guerra, então, seus seguidores se sentem na obrigação de manterem as guerras. Essa propensão pode vir tanto de um grupo miliciano numa periferia brasileira, quanto de um grupo fundamentalista no Oriente Médio. O posicionamento geográfico os separa, mas a estupidez e a morte os unem.

No campo da política, temos militantes em defesa da liberdade de expressão sexual, mas no mesmo bloco há divergências irreconciliáveis sobre a liberdade econômica, ou seja, no “combo progressista” não cabem todas as demandas. Quem defende isso é contra aquilo; quem é do grupo X está em guerra com o grupo Y, mas perceba que fundamentalismo errado é apenas aquele que acontece com os outros, ou como diria o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre: “o inferno são os outros!”.

Na falta de bom senso ou de reconciliação, o tal ilustre palestrante que citamos, prefere abusar do grito, porque argumentos dão muito trabalho, afinal. Por causa disso, me lembrei do genial Rubem Alves que dizia que deveríamos ter em vez de cursos de oratória, “cursos de escutatória”. De fato, tem muita gente querendo falar e pouca gente disposta a ouvir. E para aquela anotação do ilustre palestrante, vale o lembrete do reverendo Desmond Tutu: “não aumente seu tom de voz, mas melhore seus argumentos”.

Carlos Bezerra Júnior

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