Coluna

Luciana Brito

O antigo sonho de ser gente: a pobreza, a fome e as prioridades

18 de outubro de 2021

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O Brasil real está preocupado com isso aqui: com a garantia de ter comida na mesa, com o acesso à educação e com o direito à higiene e à vida social 

Foi finalmente na quarta-feira, dia 13 de outubro, que por ordem do Superior Tribunal de Justiça, recebeu ordem de soltura Dona Rosangela Cibele de Almeida Melo , que havia sido presa após furtar miojo num supermercado da cidade de São Paulo. Além do macarrão instantâneo, dois refrigerantes e refresco em pó foram objetos do furto que causou ao estabelecimento o “prejuízo” de R$ 21,69. Dona Rosangela é moradora de rua, está desempregada e tem cinco filhos. Ficou presa por 14 dias, enquanto suas crianças ficaram aos cuidados de sua mãe. Quando foi perguntada sobre a motivação do crime, ela respondeu que estava “com muita fome”. A humanidade de Dona Rosangela, uma fala de resistência no país que desumaniza pessoas pobres, é expressa da forma mais espontânea na frase a seguir: “Eu só estava com muita fome e queria muito comer um miojo” . Vontades, desejos e planos, sonhos dos mais íntimos ou dos mais elementares, ganham força ainda maior diante das nossas necessidades mais básicas. Dona Rosangela tinha fome e sabia de que: fosse o miojo, ou do direito de, como mãe de cinco crianças, cumprir sua responsabilidade, ela se rebelou solitariamente diante de um país que tem projetos políticos que nada fazem pelo bem-estar dela e das suas crianças.

O discurso moralista das elites que andam de barriga cheia diria que Dona Rosangela é reincidente, que é usuária de drogas e que ao ser presa, teve o que mereceu. Contudo, olhando bem ao nosso redor, pensamos que seria demais esperar de Dona Rosangela uma pobreza ideal, aquela cabisbaixa, conformada e submissa que não reaje a nada enquanto o estômago dói e suas crianças choram a falta do alimento. Talvez esse seja o sonho de muita gente, uma “pobreza perfeita”, que desistiu de lutar, que oferece qualquer serviço por um prato de comida uma vez que políticas de combate à miséria não são prioridade a ser discutida nas mesas dos jantares das pessoas poderosas e endinheiradas enquanto ela e suas crianças passam fome. Circula nas redes uma cena devastadora de pessoas, a maioria mulheres, buscando comida em um caminhão de lixo. Casos como esse não são únicos e se tornam mais comuns em todo país no momento no qual vivemos. A fome é política pública e não o combate a ela, pois a fome tira nosso ânimo, nossa dignidade, mas também nos provoca revolta. A resposta estatal para o combate individual e desesperado à fome é a mão de ferro da justiça e políticas de reforço da segurança.

Provoco essa reflexão pensando especificamente nos impactos de políticas de criminalização da pobreza sobre as mulheres, sobretudo mulheres negras e pobres em profunda condição de vulnerabilidade. Mais uma política de ódio às mulheres pobres veio também da Presidência da República, quando o chefe do executivo vetou a distribuição de absorventes gratuitos para estudantes de baixa renda, mulheres destituídas de liberdade e mulheres moradoras de rua, como Dona Rosangela. O assunto foi abordado de forma debochada pelo próprio presidente, que chamou o projeto de “auxílio modess”, sob risos e gargalhadas. Enquanto isso, ele e sua rede de apoiadorxs que acreditam que pobreza menstrual é um infortúnio do azar de ter nascido pobre e mulher ou de uma suposta incompetência individual de quem não pode comprar seu próprio absorvente. A falta de condições de manter a higiene e a dignidade enquanto se menstrua gera a completa exposição das mulheres, que para se preservarem, pagam o preço com isolamento: meninas deixam de ir para a escola, mulheres encarceradas se recolhem no seu constrangimento e a moradora de rua para não vagar pelas avenidas sangrando, esconde-se.

Como professora, não foram raras as vezes que uma aluna pediu dinheiro para comprar o absorvente de uma colega que aguardava no banheiro que o item fosse comprado. Isso não aconteceu somente comigo, mas é algo comum nos relatos das minhas colegas que atuam nas salas de aula nas escolas de ensino fundamental e médio e nas universidades. Vaquinhas que circulam entre as estudantes e o pedido urgente à professora para comprar absorvente é algo comum e o que o projeto de uma distribuição gratuita de absorventes visa fazer é garantir às mulheres e meninas que tenham o direito à saúde e à dignidade, que o Estado deveria garantir, assim como o combate à fome e à vulnerabilidade.

O Brasil real e minimamente responsável está preocupado com isso aqui: com a garantia de ter comida na mesa, com o acesso à educação cujas verbas, em diversos estados, foram reduzidas durante a pandemia, e com o direito à higiene e à vida social quando se menstrua, e que os dias do ciclo não sejam dias de vergonha, solidão e ausências. Políticas de combate à fome e pelo direito à educação e dignidade, o que inclui saúde menstrual, são ações importantíssimas de combate ao racismo, assim como são políticas públicas racistas a ausência de compromisso com tais pautas. Isso porque, como sabemos, no Brasil, a pobreza tem cor.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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