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Há duas semanas encontrei um conhecido que trabalha como porteiro num edifício num bairro de classe média de Salvador. O saudei e, como sempre, perguntei pelos seus meninos, um de quatro ou cinco anos e outro de seis anos. “Estão traumatizados”, respondeu-me ele. A razão do trauma das crianças foi uma ação policial no seu bairro após a morte de um agente da corporação. Durante a operação, os agentes públicos invadiram a sua casa, vasculharam gavetas, quebraram os móveis e, ao encontrarem sua carteira de trabalho, bateram na porta da vizinha: “cadê o marginal?”, perguntaram. De nada adiantou a vizinha dizer que tratava-se de um trabalhador, pois insistentemente apontavam para a fotografia na carteira de trabalho e diziam: “é marginal sim, olhe a cara dele, cara de marginal”. Sim, obviamente, tratava-se da carteira de trabalho de um homem negro.
Tudo foi assistido pelas crianças que aguardavam a volta do pai e da mãe na casa de uma outra vizinha no andar de baixo. Escutaram os gritos, os xingamentos e o barulho dos móveis sendo quebrados enquanto a casa era invadida. Ouviram também seu pai ser chamado de marginal, enquanto ele cumpria suas obrigações no edifício em que trabalha como porteiro. A casa ficou completamente revirada. Dali, os policiais seguiram para outra residência.
O meu conhecido me disse que a primeira coisa que fez foi trocar as portas de casa, que foram quebradas na invasão. “O resto com o tempo se conserta, mas eu quis mudar logo a porta.” Perguntei a ele se tinha consciência de que, caso estivesse em casa, a essa altura, poderia não estar vivo e ele me respondeu: “eu sei, mas fazer o que, né?”
Operações motivadas por vingança como aquela que aconteceu em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, são comuns no estado de terror e violência a que são submetidas as populações negras e pobres que vivem nas periferias das cidades brasileiras. De acordo com a pesquisa de mestrado de Terine Husek , defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, portanto uma universidade pública, quando um policial é morto em serviço, no dia seguinte as chances de morte de um civil aumentam 350%, e no mesmo dia da morte do agente de segurança, mais de 1.000%. O ódio e a lei do “olho por olho, dente por dente” como política de segurança pública quando promovida por agentes do Estado representam a própria crise institucional e, eu acrescentaria, moral das instituições brasileiras. O ódio contra pessoas negras, comum a todos os regimes de segregação racial e que segue princípios de supremacistas brancos, caracteriza cada vez mais a politica de segurança pública brasileira, que sempre foi assim, mas hoje defende seus preceitos sem disfarces, ao arrepio da lei.
A política que tem como orientação matar pessoas negras, ainda que isso signifique ações que violem o Estado de direito, contrariam ordens das instâncias máximas do Judiciário. Como têm apurado representantes de órgãos de pesquisa e vigilância, como Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pessoas negras morrem por qualquer motivo , estejam elas fazendo “coisas boas” ou não, operações como as de São Gonçalo, motivadas por vingança, têm ocorrido mesmo após a decisão do Supremo Tribunal Federal de restringir as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, que só deveriam ocorrer com a autorização da Corte. Se de um lado as ações policiais desrespeitam determinações do Judiciário, do outro contam com a legitimidade e o apoio dos representantes dos estados. Vale lembrar aqui a fala de Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro, sobre as vítimas: “Coisa boa não estavam fazendo”. Essa frase atropela os direitos de defesa, de presunção de inocência e de um julgamento que investigue o envolvimento ou não das pessoas torturadas, que tiveram seus corpos jogados no mangue, corpos que foram resgatados pelas suas próprias famílias.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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