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Luciana Brito

A vingança como política dos agentes do Estado

29 de novembro de 2021

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No Brasil, pessoas negras morrem por qualquer motivo, estejam elas fazendo ‘coisas boas’ ou não

Há duas semanas encontrei um conhecido que trabalha como porteiro num edifício num bairro de classe média de Salvador. O saudei e, como sempre, perguntei pelos seus meninos, um de quatro ou cinco anos e outro de seis anos. “Estão traumatizados”, respondeu-me ele. A razão do trauma das crianças foi uma ação policial no seu bairro após a morte de um agente da corporação. Durante a operação, os agentes públicos invadiram a sua casa, vasculharam gavetas, quebraram os móveis e, ao encontrarem sua carteira de trabalho, bateram na porta da vizinha: “cadê o marginal?”, perguntaram. De nada adiantou a vizinha dizer que tratava-se de um trabalhador, pois insistentemente apontavam para a fotografia na carteira de trabalho e diziam: “é marginal sim, olhe a cara dele, cara de marginal”. Sim, obviamente, tratava-se da carteira de trabalho de um homem negro.

Tudo foi assistido pelas crianças que aguardavam a volta do pai e da mãe na casa de uma outra vizinha no andar de baixo. Escutaram os gritos, os xingamentos e o barulho dos móveis sendo quebrados enquanto a casa era invadida. Ouviram também seu pai ser chamado de marginal, enquanto ele cumpria suas obrigações no edifício em que trabalha como porteiro. A casa ficou completamente revirada. Dali, os policiais seguiram para outra residência.

O meu conhecido me disse que a primeira coisa que fez foi trocar as portas de casa, que foram quebradas na invasão. “O resto com o tempo se conserta, mas eu quis mudar logo a porta.” Perguntei a ele se tinha consciência de que, caso estivesse em casa, a essa altura, poderia não estar vivo e ele me respondeu: “eu sei, mas fazer o que, né?”

Operações motivadas por vingança como aquela que aconteceu em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, são comuns no estado de terror e violência a que são submetidas as populações negras e pobres que vivem nas periferias das cidades brasileiras. De acordo com a pesquisa de mestrado de Terine Husek , defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, portanto uma universidade pública, quando um policial é morto em serviço, no dia seguinte as chances de morte de um civil aumentam 350%, e no mesmo dia da morte do agente de segurança, mais de 1.000%. O ódio e a lei do “olho por olho, dente por dente” como política de segurança pública quando promovida por agentes do Estado representam a própria crise institucional e, eu acrescentaria, moral das instituições brasileiras. O ódio contra pessoas negras, comum a todos os regimes de segregação racial e que segue princípios de supremacistas brancos, caracteriza cada vez mais a politica de segurança pública brasileira, que sempre foi assim, mas hoje defende seus preceitos sem disfarces, ao arrepio da lei.

A política que tem como orientação matar pessoas negras, ainda que isso signifique ações que violem o Estado de direito, contrariam ordens das instâncias máximas do Judiciário. Como têm apurado representantes de órgãos de pesquisa e vigilância, como Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pessoas negras morrem por qualquer motivo , estejam elas fazendo “coisas boas” ou não, operações como as de São Gonçalo, motivadas por vingança, têm ocorrido mesmo após a decisão do Supremo Tribunal Federal de restringir as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, que só deveriam ocorrer com a autorização da Corte. Se de um lado as ações policiais desrespeitam determinações do Judiciário, do outro contam com a legitimidade e o apoio dos representantes dos estados. Vale lembrar aqui a fala de Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro, sobre as vítimas: “Coisa boa não estavam fazendo”. Essa frase atropela os direitos de defesa, de presunção de inocência e de um julgamento que investigue o envolvimento ou não das pessoas torturadas, que tiveram seus corpos jogados no mangue, corpos que foram resgatados pelas suas próprias famílias.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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