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Alicia Kowaltowski

Do que cientistas precisam para ficar no Brasil

01 de dezembro de 2021

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A fuga de cérebros que percebemos no horizonte é produto também de um mal maior: a falta de respeito às instituições científicas e aos pesquisadores

A ciência é o que permite a vida moderna: acordar dentro de habitações construídas para nos proteger, ter alimentos armazenados em nossos lares, chegar a lugares através de meios de transporte, obter informação na ponta de nossos dedos, e viver quase o dobro de tempo que nossos ancestrais viveram. Existe uma clara correlação entre investimento científico e desenvolvimento, demonstrando que ciência é o principal mecanismo de impulsão de crescimento econômico e bem-estar.

A estrutura educacional brasileira reconhece a importância de se formar cientistas. Temos um sistema de ensino superior público estruturado e gratuito, que forma profissionais em todas as áreas. Estas mesmas universidades públicas abrigam cientistas de qualidade, que atraem estudantes para a carreira. A inserção ocorre muitas vezes ainda na graduação através da iniciação científica, um programa de excelência no Brasil, com nível de treinamento sem igual no mundo. Ao entrar para a pós-graduação, aspirantes a cientistas brasileiros encontram uma rede de programas públicos, gratuitos, e supervisionados em qualidade. Há também ofertas de bolsas para apoiar o jovem durante estes estudos. Bolsistas-cientistas, além de adquirirem o conhecimento necessário para se tornarem profissionais independentes, também realizam descobertas próprias. O resultado é que, quando formado, o jovem cientista brasileiro trouxe conhecimento ao país, mas também recebeu muitos anos de apoio financeiro público.

Por causa deste investimento e da importância fundamental do conhecimento gerado, a possibilidade de perder cientistas brasileiros formados para posições no exterior, a chamada “fuga de cérebros”, sempre figurou como uma preocupação na comunidade: não queremos investir para depois predominantemente exportar especialistas! Essa possibilidade é real, pois a profissão é altamente internacional, gerando cientistas não somente fluentes em inglês e em outras línguas, mas também capazes de trabalhar internacionalmente, com poucas barreiras burocráticas. É inclusive parte integrante do treinamento de cientistas passar períodos extensos se habilitando em técnicas e conhecimentos novos no exterior, justamente para aumentar a gama de conhecimento nacional ao retornar. A despeito disto, durante a maior parte das cerca de três décadas em que participo da produção científica nacional, a “fuga de cérebros” nunca foi um problema quantitativamente relevante para o Brasil. Estudos constantemente indicavam que a grande maioria dos nossos cientistas voltava e estabelecia carreira aqui.

Ainda é muito cedo para termos dados sólidos sobre a situação atual, mas a impressão de muitos no momento é que a situação mudou, e que há cada vez mais intenção de nossos talentosos jovens cientistas formados procurar se estabelecer no exterior. Tenho muito respeito à coragem desses jovens emigrantes e quero que tenham sucesso onde estiverem. Mas a nível nacional, a “fuga de cérebros” é uma tragédia, pois se perde não somente o investimento feito na formação destas pessoas altamente treinadas e criativas, mas também a possibilidade de conhecimento e desenvolvimento futuro que elas poderiam trazer. Precisamos, portanto, pensar em que o cientista brasileiro precisa, para além da proximidade familiar, para querer trabalhar no Brasil.

A verdade é que as condições aqui nunca foram boas: trabalhamos em prédios com infraestrutura precária como vazamentos, curtos-circuitos e cupins. Temos barreiras burocráticas imensas, e temos que resolvê-las nós mesmos, sem apoio profissional. Materiais que chegam em 24 horas em laboratórios nos EUA levam de três a seis meses para serem importados no Brasil, muitas vezes perdem a integridade neste processo, e em alguns casos nem há mecanismo para importação; precisamos nos virar sem tê-los. As bolsas e salários são poucas e de valor baixo, principalmente no início da carreira. Recursos federais para a pesquisa sempre foram muito limitados. Mas, apesar de tudo isso, a vasta maioria dos brasileiros, mostrando incrível resiliência, fazia carreira no Brasil até recentemente.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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