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No enfrentamento à covid, governadores e prefeitos obtiveram destacado protagonismo. Três interpretações emergiram deste fato. A primeira diz que, enfim, descobrimos que o Brasil pode ser uma federação. A segunda está ancorada em uma novidade: a ausência do governo federal na gestão da covid. Uma terceira interpretação, ainda mais radical, não raro se segue a estas duas: a federação brasileira teria sofrido uma transformação. Doravante, os governos subnacionais não aceitariam retornar a um papel secundário na produção de políticas públicas.
Peço licença para discordar das três. A divergência entre níveis de governo não é necessariamente um atributo das federações. O governo federal não foi ausente no enfrentamento da covid. Tampouco tende a ser estável o nível de discordância que caracterizou a gestão de políticas públicas nacionais sob o governo Bolsonaro.
A principal referência do que seja uma federação é o modelo norte-americano, no qual os estados têm amplas competências legislativas. As leis eleitorais, a regulação do mercado de trabalho, a legislação penal, por exemplo, são prerrogativas dos estados membros. Mais que isso, as elites políticas locais são muito ciosas da preservação de suas prerrogativas para legislar. Embora extrema, a Guerra da Secessão – em que os estados escravistas não aceitaram a 13ª Emenda, pela qual Lincoln trazia para a União a autoridade para legislar sobre o mercado de trabalho – não foi um episódio isolado. Sob a covid, o governo Trump deixou para os estados as decisões sobre cancelamento de eventos, fechamento de escolas, suspensão da atividade econômica e limitações à mobilidade.
A federação norte-americana, entretanto, é mais a exceção do que a regra. A maior parte das federações, em particular aquelas que construíram amplos sistemas de proteção social, concentra autoridade na União. Este é o caso da Alemanha, modelo no qual o Brasil se inspira desde que Getúlio queimou as bandeiras dos estados. Lá, como aqui, a União tem grande autoridade legislativa. Esta é uma escolha institucional pela qual se pretende que políticas homogêneas sejam adotadas no território nacional. Sua consequência é a limitação da autonomia legislativa dos estados membros, embora estes possam ter grande protagonismo na execução das políticas. O tabu da federação norte-americana é virtude na federação alemã.
Os formuladores da Constituição de 1988 concentraram autoridade exclusiva na União para legislar em um amplo escopo de áreas de política pública no mesmo ato que descentralizaram sua execução para estados e municípios. Se a execução da política de saúde é descentralizada, o Ministério da Saúde tem autoridade para coordenar estas políticas, definindo regras cuja aplicação é uniforme em todo o país. Os governos municipais, embora sejam os principais provedores de um grande número de políticas, não têm autoridade exclusiva para legislar sobre nenhuma delas.
Marta Arretcheé professora titular do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole. Foi editora da Brazilian Political Science Review (2012 a 2018) e pró-reitora adjunta de pesquisa da USP (2016 a 2017). É graduada em ciências sociais pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), fez mestrado em ciência política e doutorado em ciências sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e pós-doutorado no Departamento de Ciência Política do MIT (Massachussets Institute of Technology), nos EUA. Foi visiting fellow do Departament of Political and Social Sciences, do Instituto Universitário Europeu, em Florença. Escreve mensalmente às sextas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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