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São muitas as tragédias silenciosas e (quase) invisíveis do Brasil. Uma delas, o genocídio da população negra , foi o assunto da minha coluna de 21/9, nesse espaço. Dessa vez quero falar da fome. Assunto que me veio a partir de uma frase que remete ao famoso discurso de Martin Luther King, “I have a dream”.
O sonho que mobilizou as redes sociais na semana passada foi revelado em uma entrevista de Rosângela Sibele , 41 anos, no programa Brasil Urgente, após ter a prisão preventiva revogada pela justiça . O juiz invocou o princípio da “insignificância” do delito, mas poderia ter alegado direito fundamental à vida. Moradora de rua e usuária de crack, mãe de cinco filhos, ela tinha sido presa devido à tentativa frustrada de furto, segundo próprio relato, de uma lata de leite moça e uma garrafa de Coca-Cola “bem gelada”. Respondendo sobre o futuro, lá pelo final da entrevista, ela dispara: – “meu sonho é ser gente”. O apresentador prometeu continuar acompanhando o que vai acontecer com Rosângela e trazê-la de volta ao programa quando ela alcançar o seu sonho. Se não o fizer, o Brasil provavelmente vai esquecer, como faz com tantas outras histórias interrompidas pela fome, violência ou desespero.
A história momentaneamente visível de Rosângela lembra alguns momentos da literatura brasileira em que a fome se fez protagonista. Uma das mais marcantes é o relato de Carolina Maria de Jesus no clássico “O quarto de despejo” – o relato extraordinário da escritora que transformou em literatura o seu cotidiano de busca incessante para conseguir algo de comer para alimentar seus dois filhos. Mas ela não foi a única. A cadela Baleia também saciou, fugazmente, a família de retirantes do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, assim como os “Homens Caranguejos”, de Josué de Castro, se confundem com a lama dos mangues de Recife na busca incessante pela sobrevivência.
Os resultados de um levantamento recente da Rede Penssan ( Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional ) sobre as condições alimentares da população brasileira, revelam o cotidiano dos que lutam pela sobrevivência e, talvez, também sonhem em ser gente. Um pouco mais de 20 milhões de pessoas passaram fome no Brasil de 2020, outros 74 milhões viveram com medo de passar pela mesma situação em algum momento. A realidade devastadora é que mais da metade (55%) da população, segundo o estudo, vivencia algum grau de insegurança alimentar (grave, moderada ou leve).
Outro aspecto importante na distribuição desigual da fome diz respeito às dimensões de gênero e raça: são as mulheres e os negros as populações mais atingidas por situações de insegurança alimentar . Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 divulgada no ano passado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cerca de 78% dos domicílios com insegurança alimentar grave são chefiados por pessoas negras; e mais da metade do total de municípios na mesma condição (51,9%) são chefiados por mulheres.
A sistemática desumanização faz parte do processo de subalternização de maiorias de pobres, negros, indígenas e de outras populações marginalizadas dos direitos fundamentais
O levantamento da Rede Penssan teve uma boa cobertura na grande imprensa, mas não despertou o sentimento de urgência que deveria no país. Como acontece, não por acaso, com o genocídio da população negra. Passados alguns dias os jornais e a atenção da mídia se voltam para outras “notícias”, mais atuais. Infelizmente, parece que perdemos a capacidade de nos mobilizar diante da exposição fria dos dados das nossas tragédias. Faz parte do processo de subalternização de maiorias de pobres, negros, indígenas e outras populações marginalizadas dos direitos fundamentais, a sistemática desumanização através do racismo, da violência e da indiferença diante da vida (e da morte) dessas comunidades. Como já disse a filósofa Judith Butler, essas populações não são merecedoras de luto ou de pesar. Suas vidas e suas mortes são descartáveis.
Uma das consequências sistêmicas da fome é o enfraquecimento do sistema imunológico do organismo humano, um agravante de vulnerabilidade no marco da pandemia de covid. Mas também devemos atentar para o fato dela enfraquecer o sistema imunológico da democracia, tornando-a presa mais fácil do desespero que abre caminho aos vírus oportunistas dos autoritarismos de todos os matizes.
Na ausência de resposta adequada por parte do Estado a resposta vem, mais uma vez, da sociedade, ajudando, em maior ou menor medida, a amenizar o impacto dessa mazela que tortura e reduz os horizontes de milhões de brasileiros. É da solidariedade e da mobilização das próprias comunidades que se levantam recursos que buscam aplacar a fome de alguns. Em alguns momentos da história essas iniciativas foram capazes de despertar a esperança da mudança e impulsionar políticas públicas.
Estamos mais uma vez diante de um momento de grande mobilização cidadã em resposta à pandemia de covid e à fome que se expande no seu rastro. São inúmeras as iniciativas da sociedade civil no levantamento de recursos que distribuem cestas básicas, auxílios financeiros, assim como campanhas diversas por vacinação, testagem e prevenção. Esforços diversos como os conduzidos pela Ação da Cidadania , Coalizão Negra Por Direitos , Cufa , Redes da Maré e outros, em parceria com empresas e fundações, além de doações de milhares de indivíduos que atenderam ao chamado de ações como a da campanha “Tem gente com fome, dá de comer” .
Diante disso é desoladora a inércia do governo, incapaz de articular uma resposta que permita a recomposição de um horizonte de esperança para o Brasil. Pior, assiste-se ao desmonte de políticas que, no passado, mesmo que insuficientes, conseguiram amenizar o progresso da miséria e da fome. A resposta volta a ser aquela que o estado sempre ofereceu aos excluídos: prisão e morte.
O meu sonho é a sociedade brasileira conseguir se desejar mais humana, um lugar onde ninguém precise mais sonhar em ser gente, enquanto cata lixo e come ossos como se fosse bicho. Onde os mercados e açougues colocam à venda o que antes era descartado , buscando arrancar um último centavo de miseráveis que ainda tentam manter a dignidade de uma sacola de compras. Seria bom se conseguíssemos seguir os exemplos das ações de solidariedade em curso na sociedade para criar um movimento nacional de indignação que colocasse a fome na agenda prioritária do Estado. Segurança alimentar para todas as pessoas é o mínimo que se pede de um Estado-nação digno desse nome. Não seremos cidadãos enquanto houver uma pessoa dormindo com fome todos os dias.
Voltando ao sonho de Rosângela, com a publicidade brevemente alcançada com a sua história, ela bem podia ganhar um vale-Coca-Cola-gelada-com-leite-condensado para o resto da vida. Toda vez que sentisse o desejo do sabor adocicado do leite condensado ou de uma Coca gelada na garganta, ela poderia entrar em qualquer supermercado e pegar sem o risco de ser presa. Um pequeno gesto de marketing que faria com que ela se sentisse um pouco mais gente como a gente. Deixo aqui de graça a ideia para o proveito de alguma agência publicitária.
Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).
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