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Uma conhecida vegana há algum tempo me enviou um artigo que dizia que figos contém dentro deles insetos, muitas vezes não visíveis ao consumidor, e que por isso não são adequados para a alimentação vegana. Ela queria que eu confirmasse se essa informação era verdadeira antes de deixar de comer figos, pois, como vegana, se opõe ao consumo de animais e produtos animais.
Fiquei sem saber como responder. Mentir não é algo que faço com facilidade, mas nesse caso talvez fosse boa estratégia ao menos omitir, pelo bem da nutrição da pessoa. Isso porque conter insetos tão pequenos que os olhos não enxergam não é propriedade exclusiva dos figos. Tudo que nós comemos contém pequenos animais ou partes de animais. A natureza é muito rica e diversa nessas formas de vida, e elas estão espalhadas por todo lugar. Assim como é impossível andar sem ocasionalmente pisar numa formiga ou outros animais menores ainda, é impossível não comer pequenos animais junto aos alimentos. Para cada bicho da goiaba que você achou na fruta, você comeu dezenas de outros sem perceber, simplesmente porque eram menores. São larvas de moscas e besouros que vivem na fruta antes de se transformarem nos insetos adultos, e que não fazem mal nenhum para nós humanos.
Talvez a melhor prova de que é impossível não comer produtos de pequenos animais seja a regulamentação oficial do FDA (órgão de regulamentação de drogas e alimentos dos EUA) sobre quantidades permitidas de “contaminantes” animais na comida comercializada. Este documento contém uma fascinante tabela do que se espera ser o máximo de contaminação que alimentos bem preparados possam conter. Por exemplo, brócolis congelados nos EUA podem ter até 600 insetos e aracnídeos (grupo ao qual pertencem os ácaros e aranhas) por quilo de produto. Temperos em geral possuem quantidades relativas maiores desses pequenos animais: a páprica pode ter 3.000 fragmentos de insetos por quilo, e de quebra ainda é aceitável ter até 440 pelos de roedor (como ratos ou camundongos) por quilo. Macarrão? Se tiver menos de um fragmento de inseto por grama (ou até 500 num pacote de tamanho usual), pro FDA está nos limites aceitáveis. Uva passa pode conter dois insetos visíveis inteiros por quilo, além de 160 ovos de mosca. Extrato de tomate já é mais permissivo com a presença de ovos de moscas: até 300 por quilo. A farinha pode ser comercializada com até 1.500 fragmentos animais, além de 20 pelos de roedor, por kg. Tudo isso pode parecer muito nojento para nós que não costumamos a pensar nisso, mas é uma reflexão da realidade de nosso planeta e a natureza que nos cerca, em que se estima haver cerca de 10 quintilhões (10.000.000.000.000.000.000) de insetos, versus meros 7,8 bilhões (7.800.000.000) de pessoas.
Enquanto o veganismo é um movimento em que se evita comer animais e produtos deles, na prática se evita apenas comer animais visíveis. Pequenos animais, como insetos, aracnídeos e vermes (na maioria inofensivos para nós) existem por todo o lado, em tudo que comemos, e é impossível um humano se alimentar sem comê-los. Para mim, do ponto de vista biológico, ecológico e ético, faz sentido querer evitar comer animais vertebrados, que possuem coluna espinhal, como boi, porco, frango e peixes. São animais mais complexos, com cérebros maiores, e que causam maior impacto ambiental para criar como fontes de alimentos. Porém, não faz sentido biológico evitar comer insetos como os presentes no figo, ou produtos de insetos como mel de abelhas, porque é inevitável comer animais invertebrados e produtos destes animais. Eles estão por toda a nossa volta, sem que possamos vê-los ou separá-los dos produtos puramente vegetais.
De fato, a pergunta nutricional que me incomoda em relação a comer animais é por que não comer insetos visíveis, se todos nós já comemos insetos sem perceber, em menor tamanho. Insetos são alimentos super interessantes do ponto de vista nutricional : possuem exoesqueletos formados por quitina, fonte de fibras alimentares, que não estão presentes nos animais com ossos, vertebrados, que estamos acostumados a consumir. Tem alta quantidade de proteínas (maior em relação ao peso que animais vertebrados), com todos os aminoácidos essenciais (algo que raramente acontece com proteínas de produtos vegetais), e contém gorduras importantes como ômega 3 e 6.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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