Coluna

Luciana Brito

Mulheres da Gamboa de baixo, a coragem e o direito de viver

08 de março de 2022

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Quem ousará dizer que aquelas que lutam pela vida, que fecham avenidas enquanto protestam e choram a morte dos seus não têm um projeto de família e de segurança pública?

As primeiras horas da terça-feira do carnaval segregado de Salvador de 2022 foram marcadas por tiros que vinham da comunidade da Gamboa de Baixo, onde vivem famílias negras inteiras, que resistem ao avanço da especulação imobiliária, mantendo-se numa das áreas mais bonitas da cidade de Salvador, de frente para o mar da Bahia de todos os Santos. Naquele dia 1º de março, o silêncio da madrugada, bem depois que a turma da praia foi embora, foi interrompido por horas de horror. Eram “os homi” chegando, e chegando como sempre chegam nas comunidades pobres: com fome de sangue negro.

De acordo com as mulheres da Gamboa , chegaram atirando para todos os lados por volta das duas da manhã, soltando bombas de gás lacrimogêneo e ameaçando as pessoas: xingando, batendo, humilhando, invadindo residências. Dessa vez, levaram a vida de três. Estavam fora de casa Alexandre, de 20 anos, primeiro a ser identificado como morto. Até as primeiras horas da manhã não se sabia quem eram os outros dois levados pela polícia para fora da comunidade, cujos corpos estavam enrolados em lençóis que os agentes públicos arrancaram do varal. A mãe de Alexandre, D. Silvana , afirma que ainda viu o filho com vida, pedindo socorro, na mala de uma viatura. Pediu para ver o filho e teve uma arma apontada para seu rosto por um policial. Pela manhã ela estaria no IML, clamando por Deus como seu maior justiceiro e citando versos bíblicos para buscar conforto.

Já era dia quando teve-se notícia sobre quem seriam os outros dois baleados, já mortos. Cleberson Guimarães, de 22 anos, e o menino Patrick de Souza, de 16 anos, Ogã, portanto candomblecista como eu.

A execução dos três fez as mulheres da Gamboa de Baixo subirem o asfalto e exigirem justiça, exigiam também saber quem eram os corpos retirados da comunidade. Assim, por volta das 5h da manhã de terça, um cordão de mulheres negras, adultas, idosas e meninas, bloqueou uma das vias mais importantes de Salvador, que conecta a Cidade Alta à Cidade Baixa. Ainda em estado de choque, de peito aberto, tendo o próprio corpo como defesa, elas enfrentam a truculência dos policiais que as ameaçam na frente das câmeras, quando, por vacilo, esquecem que estão sendo filmados. São elas que os alertam: “vá, fale aí o que você falou na frente da câmera. Ele [o policial] ameaçou uma criança de 15 anos aqui!”

A via fecha, a imprensa chega, e essa é a hora de desmascarar o Estado. Elas sabem o que esperam que elas digam, e o que pensam delas: “eles tem que fazer o trabalho deles, mas façam o trabalho deles direito”, falam elas reconhecendo o papal da corporação. As mulheres da Gamboa sabem que não podem pedir o fim da polícia, nem o fim das operações nas comunidades, portanto, exigem o que podem: “chegar assim, atirando e xingando todo mundo, não”. O repórter, que carrega o nome da capital da antiga metrópole portuguesa, sugere o de sempre: “ele tinha envolvimento?”, repetindo a máxima que vai da política de segurança, à mente das elites baianas e até mesmo nas nossas comunidades, até que um parente “sem envolvimento” seja o alvo. Ser “envolvido ou não”, na Bahia, é argumento para, ao arrepio da lei, promover a matança da juventude negra. Essa justificativa, a do envolvimento com o tráfico de drogas, busca respaldo na fala do comandante, que é sempre a mesma: a polícia chegou, foi recebida com tiros e revidou para “salvaguardar a vida dos baianos”. Mas de quais vidas fala o comandante? Salvaguardar a vida enquanto promovem uma chacina é como “defender a família” enquanto destroem as famílias daqueles cuja cor da pele é igual à deles próprios.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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