Coluna

Luciana Brito

Lágrimas de Dona Madalena: a escravidão entre nós

03 de maio de 2022

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Manutenção da exploração de pessoas negras em 2022 revela um Estado que incentiva práticas criminosas

Semana passada, conhecemos a história de Dona Madalena Santiago da Silva , de 62 anos, mais uma mulher negra brasileira resgatada por agentes do Ministério Público do Trabalho por estar submetida ao regime de escravidão na cidade de Lauro de Freitas, na Bahia. A pobreza da família fez com que, aos 8 anos, Dona Madalena fosse entregue pelo seu pai à família Seixas Leal, sob promessas e acordos que desconhecemos. Melhor, conhecemos também essa história: comida, possibilidade de acesso à escola, cuidados médicos, enfim, possibilidade de uma vida melhor nas “casas de família” são artifícios encontrados por famílias brancas, muito abastadas ou não, para submeter ao trabalho infantil uma menina do interior ou periférica, cuja família não pode lhe garantir os direitos básicos.

Mas qual era o Brasil no qual Dona Madalena, quando ainda era apenas uma menina negra, foi entregue à matriarca da família Seixas Leal, Sônia, uma mulher adulta que deveria cuidar da criança que se tornou sua serva? Ao que tudo indica, Madalena foi entregue à família que lhe explorou e escravizou por cerca de 54 anos por volta de 1968, quando o Brasil vivia uma ditadura militar. Como mulher escravizada, Dona Madalena passou por um Brasil ditatorial, depois “democrático”, assistiu um sociólogo ser eleito, um trabalhador e uma mulher. Em 2013, quando a PEC das Domésticas foi aprovada, nada mudou na vida de Dona Madalena, que também não sentiu a diferença em 2017, quando o Brasil já vivia uma reviravolta política no caminho de medidas antipovo, os direitos já garantidos pelas trabalhadoras domésticas como ela foram “flexibilizados”, ou seja, vulnerabilizados e finalmente, perdidos. Seria a vitória dos homens e mulheres das “casas de família”, que nunca aceitaram a lei que garantia direitos às trabalhadoras domésticas, que em conjunto com o Estatuto do Criança e do Adolescente, que proibia o trabalho infantil, poderia pôr fim à máquina de produção de meninos e meninas escravizadas. Por fim, o único deputado que votou contra o direito dessas trabalhadoras, um conservador de ultradireita que defende abertamente a perda de direitos trabalhistas, assim como a tortura, tornou-se presidente da República.

As mudanças históricas, sociais e políticas que aconteciam no Brasil pouco ou nada mudaram a vida de Dona Madalena enquanto ela vivia no cárcere, numa “máquina do tempo imaginária” no interior de uma casa grande que a prendia a um século qualquer anterior ao 13 de maio de 1888: Dona Madalena, assim como seus “patrões” ainda viviam no Brasil escravista. Seus captores, no interior da sua residência, tinham o poder de fazer com que a roda do tempo não girasse para frente.

Sofrendo racismo, exploração da sua mão de obra, e toda sorte de humilhações, Dona Madalena não foi só a “mãe preta”, da única herdeira da família Seixas Leal, conforme termo utilizado pelo próprio patriarca em carta deixada para a filha: Madalena foi mãe preta da neta da sua captora, além de sua “irmã preta”, conforme afirmou ao justificar à Justiça o motivo pelo qual nunca formalizou o vínculo de trabalho da serviçal, a qual nunca pagou salário: a considerava como uma “irmã” .

A filha do casal, uma advogada, apropriou-se não só da vida, do trabalho e da dignidade de Dona Madalena. Ela também subtraiu sua identidade para fazer empréstimos, deixando dívidas em seu nome. Além disso, a mesma roubou o dinheiro da aposentadoria da idosa, cerca de R$ 20 mil. Nas palavras do próprio pai da algoz de Madalena, através de carta deixada para a família, Dona Madalena servia à sua filha como “uma escrava”.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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