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Veio à tona o fato de que o candidato ao governo da Bahia, ACM Neto (União Brasil), declara-se pardo . Além da possibilidade de ter acesso à verba destinada a candidatas e candidatos negros, em nada isso implicará na vida do ex-prefeito de Salvador, que herda do seu avô, além de riqueza, uma história de coronelismo e patriarcado na política. Ainda assim, o candidato seguirá sendo branco, rico e influente, nada mudará. Vale também lembrar que em 2009 o antigo partido do atual candidato ao governo da Bahia, o DEM, entrou com uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) contra as cotas raciais.
Na mesma esteira de absurdos e de deboche com a vida e a identidade das pessoas negras, o prefeito de Salvador, Bruno Reis (DEM), inquestionavelmente branco, afirmou ser um “pivete do Calabar”… Explico o absurdo imenso que isso significa: na Bahia negra e pobre, pivete é a forma como as elites se referem aos meninos negros, vistos como “trombadinhas”, criminosos em potencial. Essa pecha certamente não marcou a infância do atual prefeito da cidade mais negra do Brasil.
Mas, nas comunidades negras da mesma segregada cidade, pivete também é criança, em geral um menino.
Como é possível quase sempre apropriar e subverter os significados, homens negros também chamam carinhosamente de pivete um menino que é seu filho, irmão caçula, vizinho, sobrinho ou afilhado, enfim, alguém de quem se gosta. Quando diz-se “meu pivete”, isso aciona sentimentos de afeto em quem diz e no menino que escuta. Mas o pivete de jeito nenhum pode ser um menino branco rico, pois o pivete, aquele que é pivete mesmo, mora no Curuzu, Paripe, Pernambués, Liberdade ou Calabar, bairros periféricos de Salvador. E na podridão da política, aquele que na década de 1990 seria o “Parmalat” ou “menino amarelo” da Graça, da Barra, da Ondina ou do Itaigara, bairros de elite de Salvador, hoje sem nenhuma ética ou bom senso, ou até mesmo decência, se diz ser o que ele nunca foi e nem queria ser. Os “pivetes do Calabar” estavam nos piores pesadelos dos meninos bem-nascidos de Salvador, pois nos seus pesadelos levavam-lhe os tênis, os relógios, as mochilas compradas nos shoppings.
Por isso, é um escárnio que hoje, depois de uma história de tanta violência, repulsa e segregação, que criminaliza e leva as vidas de meninas e meninos negros até hoje, os rapazes das elites, buscando uma identificação eleitoreira tardia, digam-se um deles.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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