Coluna

Januária Cristina Alves

Educação para as mídias em tempos de eleição

15 de setembro de 2022

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A questão de preparar crianças e jovens para tornarem-se adultos, cidadãos e leitores críticos da mídia já era considerada fundamental há mais de 100 anos

“Quando os cidadãos souberem que o jornal pode mentir ou, pelo menos, que ele pode apresentar como definitivas soluções que não passam de aspectos parciais dos problemas impostos pela vida; quando estiverem aptos a discutir com prudência, mas também com ousadia, quando tiverem uma formação baseada na investigação experimental e na criatividade (…) haverá então qualquer coisa de diferente nas nossas democracias.” Esta frase foi proferida no início do século 20 (mais precisamente nos anos 1920) pelo educador francês Célestin Freinet, fundador da chamada pedagogia Freinet, ainda hoje utilizada na educação de crianças do mundo inteiro. Substitua a palavra jornal por “mídias” ou, melhor ainda, por “mídias sociais” e teremos uma definição perfeita da principal função da chamada Educação Midiática e, mais precisamente, a meu ver, do que chamo de Educação para as Redes.

Em seu livro mais famoso intitulado “O jornal escolar” (ed. Estampa Ltda., 1974), Freinet, considerado um dos principais ícones do movimento de renovação educativa a que se convencionou chamar Escola Moderna – que tinha como missão romper com os modelos tradicionais herdados do século 19 —, afirmava sobre a importância de se trabalhar com os jornais (lendo e também fazendo com os alunos) na escola: “estamos atualmente na aurora de um novo período: a imprensa impôs a tal ponto a sua soberania que mesmo o manual mais rico não passa de um ‘ersatz’ da riqueza gráfica posta à disposição de todos pela técnica contemporânea. A própria escrita manuscrita tende a minimizar-se num mundo em que a máquina de escrever, a poligrafia, o disco, a rádio, o cinema, a televisão, o gravador, intensificam e aceleram a intercomunicação e as trocas”. Ou seja, há mais de 100 anos a questão de preparar crianças e jovens para tornarem-se adultos, cidadãos e leitores críticos da mídia já era considerada fundamental. O vínculo entre a mídia e a democracia, portanto, nada tem de novo, mas em tempos de polarização política como esses em que vivemos, tornou-se ponto fulcral de atenção em qualquer país que preze pelo seu Estado democrático de Direito.

Nesta semana tive o privilégio de participar do seminário “Desinformação, educação midiática e eleições” promovido pelo grupo JDL ( Jornalismo, Direito e Liberdade ) do qual faço parte, apoiado pelo Instituto Vero, que divide parceria com o Centro Acadêmico Lupe Cotrim, da USP (Universidade de São Paulo). Eu, Laura Mattos, jornalista especializada em educação do jornal Folha de S.Paulo, e Victor Durigan, coordenador de relações institucionais do Instituto Vero, com a mediação do também jornalista Victor Vicente, head de comunicação do instituto e membro do JDL, nos dispusemos a refletir sobre como a desinformação vem afetando liberdades individuais e políticas durante processos eleitorais e em que medida a educação midiática e o letramento digital podem nos revelar indícios do estado dessas liberdades públicas, além de meios de lutar contra a desordem informacional. O tema é mesmo “a bola da vez” e não apenas a conversa do seminário evidenciou isso – com ênfase especial na importância da regulação das plataformas digitais para a manutenção da nossa democracia, tema de pesquisa do Victor Durigan –, mas pela quantidade de iniciativas que as organizações de comunicação têm lançado e compartilhado com a sociedade, visando combater a enxurrada de notícias falsas que pululam a cada segundo na internet e em especial nas redes sociais.

É preciso democratizar oportunidades para que todos nós possamos exercitar a nossa autonomia por meio do que lemos, escrevemos e conversamos

E como elas têm se revelado imprescindíveis! Em uma das minhas colunas já relatei a experiência de ter participado do projeto do Redes Cordiais, de visitar o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para conhecer o funcionamento das urnas eletrônicas. Só essa iniciativa alcançou mais de 10 milhões de pessoas nas redes sociais. Na esteira desse sucesso, o Redes também acabou de lançar a campanha “Respire antes de acreditar ”, realizada com os influenciadores que passaram pelos workshops de educação midiática oferecidos pela instituição. Serão publicados oito vídeos curtos, durante o período eleitoral, mostrando como a desinformação funciona a partir das checagens realizadas pela Agência Lupa, parceira do projeto. O Instituto Vero também colocou nas redes o seu projeto Fake Dói , que é uma jornada formativa para estimular que jovens entre 16 e 24 anos adquiram habilidades de investigação cidadã para descredibilizar as desinformações durante o período eleitoral. Dois jovens apresentadores, super antenados com a linguagem do seu público-alvo, ensinam a usar ferramentas abertas e gratuitas, as chamadas Osint (Open Source Intelligence Technology), para checar informações. Tudo de um jeito simples e acessível não apenas aos jovens, mas a qualquer pessoa que se interesse em desmascarar as fake news.

Somam-se a esses os projetos o “Reload Explained”, uma criação coletiva da Agência Pública em parceira com outros nove veículos jornalísticos digitais e independentes: ((o))eco, Agência Lupa, Amazônia Real, Congresso em Foco, Énois, Marco Zero Conteúdo, Ponte Jornalismo, Projeto #Colabora e Repórter Brasil, que é um verdadeiro guia audiovisual sobre o que é e como funciona a democracia, com direito a cartuns, infográficos e vídeos sob medida para o público jovem; e o BotPonto , um robô que monitora vídeos postados no YouTube durante as eleições deste ano, ferramenta criada pelo Núcleo Jornalismo, uma iniciativa que monitora o impacto das redes sociais na vida da sociedade. E para arrematar este conjunto de dicas, vale destacar a cartilha #Eleições sem Ódio , produzida pela Safenet Brasil para a população jovem, contendo uma série de informações e ferramentas para que eles enfrentem esse período eleitoral com ética, segurança e disponibilidade para o diálogo.

Além dessas novidades, qualquer cidadão brasileiro pode usar a ferramenta de checagem de notícias criada pelo próprio TSE desde 2020, a página “ Fato ou Boato ”, onde encontrará esclarecimentos sobre fake news e o processo eleitoral, notícias checadas, além de recomendações de conteúdos educativos. E para quem gosta dos aplicativos de mensagens como Whatsapp e Telegram, a agência de checagem de notícias Aos Fatos disponibiliza a Fátima , a robô checadora de fatos, que verifica se uma informação é verdadeira ou não, e ainda envia um boletim diário com notícias checadas.

Combater as notícias falsas, ainda mais em períodos eleitorais, não é uma tarefa simples e também não se trata apenas de uma iniciativa individual ou de algumas instituições que trabalham com comunicação. Trata-se de um projeto de sociedade, no qual, desde a mais tenra idade, é preciso democratizar oportunidades para que todos nós possamos exercitar a nossa autonomia por meio do que lemos, escrevemos e conversamos. A comunicação permite que sejamos mais críticos e conscientes, mas ela precisa ser, como dizia o nosso educador maior Paulo Freire, “palavramundo”. E em tempos cibernéticos essa palavra que permite ler e compreender o mundo também está nas redes, então, precisamos, mais do que nunca, aprender a navegá-las. E é muito bom saber que, para isso, não estamos sozinhos.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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