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Luciana Brito

A erotização das crianças na narrativa eleitoral

18 de outubro de 2022

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Cenário construído pelo presidente ao falar de jovens venezuelanas não prevê a proteção dos direitos das crianças

Chegamos ao fundo do poço, de novo.

Na semana passada, a ex-ministra e recém-eleita senadora Damares Alves afirmou, sem provas, que crianças de Marajó eram vítimas de um esquema de tráfico sexual. Revelando nada mais que taras e explorando o clima de medo e terror cada vez mais utilizado como arma política, vinculou a eleição do seu candidato ao combate à pedofilia, proteção das crianças e defesa da família, como sempre.

A imaginação da ministra expressa nas denúncias até agora não comprovadas banalizaram uma fantasia dantesca, na qual crianças teriam seus dentes arrancados para a prática de sexo oral. A completa falta de limites e a perversidade sádica da ministra, mais do que qualquer coisa, oferece ainda mais uma maneira de, ainda que no campo da fantasia, atentar contra os corpos de crianças. A fantasia eleitoreira da ministra nos põe a imaginar o que até antes era impossível e sem sentido. Portanto, é nesse sentido também que sua mentira/fantasia é perigosa: ela naturaliza o crime, materializa os absurdos, desumaniza corpos que lutam por direitos, pelo reconhecimento da sua humanidade.

Aliás, ao longo do período eleitoral, temos assistido como a campanha do presidente atual tem associado uma suposta onda de abusos infantis ao seu oponente. Na campanha eleitoral passada, era a tal “mamadeira de piroca”. Nesta, é a notícia mentirosa da implementação do banheiro unissex, que acabaria por deixar as crianças vulneráveis a abusos nos banheiros públicos e até mesmo nas escolas. A notícia mentirosa atinge, sobretudo, a comunidade LGBTI+, pois distorce maliciosamente demandas políticas de pessoas travestis e trans que exigem o direito ao uso do banheiro que lhe deixa mais confortável, de acordo com suas identidades.

Mas a erotização do corpo de meninas pobres e o flerte com a pedofilia seria tema trazido à baila mais uma vez, porém num escândalo que envolve desta vez o próprio candidato à reeleição. O episódio demonstra como uma interação com meninas imigrantes foi reelaborada e ganhou verniz de cenário erótico, um harém de 20 ou 30 meninas.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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