Coluna

Januária Cristina Alves

O futuro (de hoje) não é mais como era antigamente 

08 de dezembro de 2022

Temas

Compartilhe

O que será de nós? A pergunta é ancestral, mas as respostas mudam ao longo da história da humanidade

“Queria dar uma notícia para vocês que são jovens: vocês estão f***dos. O futuro está comprometido (…) Está uma bagunça. E vai piorar”, disse o cineasta Fernando Meirelles, diretor do filme “Cidade de Deus” – já um clássico do cinema brasileiro – que foi homenageado na CCXP 22 (Comic Con Experience), o maior evento de cultura pop do país. A frase foi dita quando ele comentou sobre o seu interesse em temas atuais como as injustiças sociais e a mudança climática, por exemplo. Para ele, os jovens têm pela frente um futuro tão sombrio quanto as distopias que fazem sucesso no mundo da ficção. Não que os desafios das outras gerações anteriores a esta tenham sido menores ou mais simples, mas Meirelles expressou um medo que ronda a cabeça dos jovens de todos os cantos do mundo: o de não dar conta das demandas complexas de um mundo em constante transformação, e em uma escala e velocidade nunca antes experienciada.

O que será de nós no futuro? Se a pergunta é ancestral, as respostas mudam ao longo da história da humanidade e, como diz o escritor e historiador Yuval Noah Harari, autor de best-sellers como “Sapiens” e “Implacáveis: como nós conquistamos o mundo” (Cia. das Letras), o seu primeiro livro lançado para o público jovem que versa sobre a história da humanidade, em uma entrevista para a Revista 451, é tudo uma questão de escolha : “As pessoas muito frequentemente me pedem que preveja o futuro, perguntam se sou otimista ou pessimista. Eu não sei por quê; no fim das contas, tudo depende de decisões humanas. (…) a história não é determinista, sempre temos a possibilidade de agir (…) O mundo é do jeito que é porque as pessoas fizeram escolhas no passado.” Pois é, só que fazer escolhas num contexto em que a palavra do ano eleita pelo prestigiado dicionário europeu Collins foi “permacrise” que significa, segundo a editora da publicação, “a sensação de viver um período prolongado de instabilidade”, parece mais desafiador do que jamais foi um dia.

Como explicita o texto que define a expressão, disponível no blog do dicionário: “(é) um termo que incorpora perfeitamente a sensação de passar de um evento sem precedentes para outro, enquanto nos perguntamos, desolados, quais novos horrores podem existir ao virar a esquina”. E aí, eu pergunto: como fazer escolhas produtivas e sustentáveis num mundo em que não temos certeza alguma, assolados pelo “gaslighting” – também a palavra do ano, segundo o dicionário americano Merriam-Webster, que significa “manipulação psicológica de uma pessoa, geralmente por um longo período de tempo, o que faz com que a vítima questione a validade de seus próprios pensamentos”? O dicionário justifica a escolha da palavra dizendo que “nos últimos anos, com o grande aumento de canais e de tecnologias utilizadas para enganar, gaslighting tornou-se a palavra preferida para a percepção de engano”. No mínimo, trata-se de uma tarefa hercúlea.

O que retratamos em nossas interações reais e virtuais ajuda a construir o nosso cotidiano concreto e aquele que desejamos

E, para completar um trio de expressões que definem o nosso tempo, podemos incluir também a palavra do ano segundo dicionário britânico da Universidade de Oxford: “modo goblin”, que foi definida como “um tipo de comportamento que é assumidamente auto-indulgente, preguiçoso, desleixado ou ganancioso, tipicamente para rejeitar normas sociais ou expectativas”. O “modo duende” (goblin é um duende, uma espécie bastante comum na literatura fantástica, nos games e em jogos de RPG) se refere ao estado de abraçar o conforto e a preguiça, recusando atividades que exijam esforço. Segundo texto do Nexo , o termo “é usado para descrever momentos de desleixo intencional, em que a pessoa abre mão de hábitos como se alimentar com qualidade e ter uma boa higiene (…) A escolha de 2022 é vista como parte de um movimento de oposição à produtividade e positividade excessivas”. O seu uso tem a ver com a crítica que a chamada geração Z tem feito às redes sociais, que glamourizam uma vida que não é real e que é “artificialmente positiva”.

É interessante observar que as palavras do ano estão todas relacionadas à relação do ser humano com o universo digital. E elas denotam não apenas o cansaço e a exaustão que estamos vivenciando com o uso (e o abuso) dos recursos cibernéticos , mas sobretudo o fato de que estamos vivendo uma crise permanente que tem a ver com as nossas crenças, com a nossa (in)segurança epistêmica: já não sabemos mais o que sabemos. E se é assim, como podemos saber o que precisamos para viver? Como dizia o saudoso Renato Russo, compositor da canção “Índios”, gravada com o Legião Urbana, seguimos desejosos: “quem me dera ao menos uma vez/ Explicar o que ninguém consegue entender/ Que o que aconteceu ainda está por vir” e assim, só nos resta constatar que “o futuro não é mais como era antigamente”. Imaginar os futuros possíveis, certamente, é um dos maiores desafios dessa Era da (Des)informação.

Um relatório publicado pela Unesco recentemente aqui no Brasil intitulado “Reimaginar o nosso futuro juntos”, que foi elaborado pela Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação, discorre sobre as dificuldades de conseguirmos sonhar futuros factíveis diante do cenário disruptivo com o qual nos deparamos agora. Porém, enfatiza o papel da educação na construção deles, destacando o papel dos jovens na utilização de mecanismos que propiciem a criação de uma vida mais sustentável: “precisamos tomar medidas urgentes para alterar o rumo, porque o futuro das pessoas depende do futuro do planeta e ambos estão em risco. O relatório propõe um novo contrato social para a educação, (…) [que é] a nossa chance de reparar as injustiças do passado e transformar o futuro. Acima de tudo, ele se baseia no direito à educação de qualidade ao longo da vida, abraçando o ensino e a aprendizagem como esforços sociais compartilhados e, portanto, bens comuns”, diz o texto de abertura do documento. Na prática, o que tudo isso quer dizer é que os jovens precisam ter oportunidade para exercitar a sua criatividade e protagonismo para não apenas imaginar outros futuros possíveis, mas para concretizá-los. Nesse sentido, é preciso olhar para a educação para além dos muros escolares e incluir o universo digital nesse pacote de transformação. Afinal de contas, os jovens estão vivendo suas vidas entre o on e offline e não há como não incluir as mídias como veículos que podem propiciar esse exercício criativo. Ao elaborar conteúdos nas redes sociais as crianças e os jovens cocriam o mundo em que estão inseridas e, portanto, é necessário que aprendam a fazer isso de maneira ética e responsável.

Imaginar o que queremos para o amanhã passa pela criação de referenciais robustos para que possamos construir a nossa segurança epistêmica e factual. E esse é um trabalho a ser realizado a longo prazo, mas que começa na elaboração diária da curadoria das informações que acessamos, produzimos e compartilhamos. Todos somos criadores do futuro, o individual e o coletivo. O que retratamos em nossas interações reais e virtuais ajuda a viver o nosso cotidiano concreto e a planejar aquele que desejamos. Portanto, é urgente começar a trabalhar sobre o futuro que temos e o que o queremos ter.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas