Coluna

Vozes da Amazônia

Cidades invisíveis: a Amazônia urbana na emergência climática

21 de dezembro de 2022

Temas

Compartilhe

Se a preservação da floresta é tão importante para a sobrevivência do planeta, a qualidade de vida dos habitantes da região amazônica também deveria ser

Se alguém te perguntasse “o que vem à sua mente quando pensa na Amazônia?”, quanto tempo demoraria para falar dos elementos dos espaços urbanos? Florestas, rios e abundância de paisagem natural, necessidade de preservar a biodiversidade, preocupação com as queimadas e savanização. Todos esses são temas amplamente debatidos, ainda mais no contexto atual em que percebemos os efeitos da crise climática se intensificarem. Enquanto isso, os espaços urbanos da Amazônia brasileira seguem invisibilizados para grande parte da população. Mesmo que não se apresente na mesma dinâmica que as manchas urbanas do Sudeste do país, a região amazônica apresenta uma proporção em torno de 75% da população urbana e 25% da população rural. Parece haver um esquecimento de que, à beira dos rios, abaixo ou entre aquele verde que se pode avistar dos aviões existe uma enorme diversidade de uso do solo, com cidades de diferentes escalas e articuladas entre si. Mesmo quando há esse reconhecimento, as cidades amazônicas são observadas nas lentes e moldes das cidades europeias ou do Sudeste brasileiro.

Para além de enxergar as cidades da Amazônia, é necessário compreender suas complexidades. A forte presença de matrizes étnicas indígenas, africanas e europeias influenciam até hoje suas formações, cultura e modos de vida. Dentre as características das múltiplas cidades e ainda dentro de um mesmo espaço urbano, encontramos padrões de desenho exógenos, frutos do colonialismo português nas áreas mais centrais, ocupadas por grupos sociais com maior acesso à renda. Em paralelo também encontramos, nas ocupações espontâneas, padrões construtivos da arquitetura popular em áreas ribeirinhas, de várzea ou na terra firme, com amplo uso de madeira e mantendo a relação com os rios e a natureza, tal como o modo de vida de povos tradicionais amazônidas. Formas de construir que foram estigmatizadas como ultrapassadas e precárias, a partir do ponto de vista colonialista, mas que resistem mantendo a diversidade da paisagem local.

Para além de enxergar as cidades da Amazônia, é necessário compreender suas complexidades

Ora, mas se a preservação da Amazônia é tão importante para a sobrevivência do planeta, a qualidade de vida de seus habitantes também deveria ser. No entanto, o que observamos na prática é sua exploração associada a uma lacuna de acesso a serviços básicos por parte da sua população em comparação a outras regiões. Estamos cercados de água doce, mas os índices de saneamento básico e água potável são os mais baixos do país, além disso, o acesso a habitação segura, segurança alimentar, mobilidade urbana e espaços públicos de qualidade são garantidos à menor parcela da população. Enquanto a paisagem que nos envolve é vista como recurso a atender o processo de urbanização, grande parte da população vive abaixo da linha da pobreza, aprendendo a resistir para sobreviver.

Enquanto isso, os tomadores de decisão seguem investindo em padrões desenvolvimentistas como solução para as questões das nossas cidades. Apesar dos aspectos climáticos e morfológicos locais serem muito específicos desta região, o repertório construtivo eurocêntrico ainda é convencionado e reproduzido como regra, ampliando os níveis de impermeabilização do solo, formações de ilhas de calor, e ignorando saberes e culturas que demonstram ter uma relação mais harmônica com a natureza. As consequências dessas escolhas já vêm sendo sentidas em um contexto de emergência climática, embora também sejam ampliadas conforme a urbanização é incentivada. Assim, quem vive na Amazônia já convive com os efeitos negativos das mudanças climáticas e ocorrência de eventos climáticos intensos como resultado da supressão de cobertura vegetal, expansão agrícola e a expansão de cidades, efeitos estes que impactam desigualmente a população, mas que seguem sendo ignorados pelo planejamento das cidades e programas econômicos para a região.

Por isso, o repertório de produção de cidades na Amazônia precisa ser revisado e repensado, retomando-se práticas que melhor se adaptam às características das cidades amazônicas, desenvolvendo-se estratégias mais eficazes de resistência e resiliência diante os impactos associados às mudanças climáticas. Para isso, é preciso investir em formas inovadoras de promover infraestrutura considerando as práticas locais e nos reconhecendo dentro da nossa realidade, como a infraestrutura verde e as soluções comunitárias; produção habitacional que respeite as condições climáticas da região; inclusão da população de forma ativa nas tomadas de decisão e nos desenhos projetuais; soluções de mobilidade inclusivas e sustentáveis que retirem o carro do local de centralidade do planejamento urbano, entre outras práticas que respeitem as relações socioambientais na Amazônia.

O caminho é reconhecer as particularidades socioculturais, climáticas e morfológicas que fazem as cidades amazônicas únicas e compreender a fundo suas potencialidades. Deste modo, poderemos nos relacionar de forma mais harmônica com a natureza e proporcionar inclusão, coesão social e qualidade de vida a todos que aqui residem e resistem, tornando-nos exemplo de resiliência para outras cidades do mundo.

Isabela Avertano Rocha é arquiteta e urbanista. Especialista em Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, mestra em Desempenho Ambiental e Tecnologia. Atualmente é doutoranda no PPGAU(UFPA) na linha de pesquisa de Desempenho Ambiental e Tecnologia com enfoque em Mudanças Climáticas na Amazônia Urbana e diretora executiva no Laboratório da Cidade. Também integra o time Urbana Pesquisa, ama falar de cidades e acredita no poder transformador da coletividade e participação.

Sâmyla Blois é graduanda em Arquitetura e Urbanismo (UFPA) e bolsista de iniciação científica do CNPQ cuja pesquisa possui enfoque em ecologia urbana, mudanças climáticas, justiça climática e Amazônia. Possui experiência com empreendedorismo social e desenvolvimento de lideranças jovens e comunidades de impacto social. Atualmente é estagiária no Laboratório da Cidade, trabalhando com o desenvolvimento de projetos e pesquisa, e faz parte do time Urbana Pesquisa.

Vozes da Amazôniaé uma coalizão formada por organizações, movimentos e coletivos socioambientais e culturais de dentro e fora da Amazônia brasileira. Surgida em julho de 2021, reúne visões, narrativas e territorialidades diversas, mas unidas com um único propósito: mobilizar e engajar toda a sociedade pela proteção da floresta, de seus povos e do equilíbrio climático do planeta.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas