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Por somente 2 milhões de votos de diferença, a menor entre dois candidatos à Presidência desde a redemocratização, vivemos hoje a esperança de um Brasil novo. É muito, mesmo que, na prática, tenhamos voltado a um estado de civilização e prevalência das regras do jogo da democracia. Todas e todos sofreram até o último instante, numa disputa por um projeto de nação na qual foi possível saber verdadeiramente o que pensa cada uma e cada um: o vizinho, a simpática colega de trabalho, as pessoas da família, o motorista de ônibus. Todas as pessoas revelaram de que lado estavam.
A esta altura, 50,9% da população brasileira que votou em Lula respira aliviada, ou continua lutando por um mínimo de equilíbrio nos poderes. Mulheres negras, indígenas e brancas cobram mais representatividade na equipe de transição e entre os nomes possíveis para os ministérios. Movimentos sociais cobram mais participação de pessoas dos movimentos de base. Lideranças negras do Nordeste denunciam o centralismo do Sudeste, cobrando maior participação de pessoas da região que, sem exageros, tirou o Brasil do obscurantismo antidemocrático ao garantir a vitória de Lula. Mesmo assim, ainda que com rasuras devido a essas ausências e desigualdades, o jogo é outro. Ao menos pode-se esperar o diálogo e a escuta, além da inclusão de nomes fundamentais no futuro governo.
Se a maioria reclama baixinho, de outro lado há uma minoria barulhenta que nos lembra que não será fácil redemocratizar o Brasil. Isso foi sentido durante toda a campanha e um episódio na véspera do segundo turno foi bastante simbólico, quando uma deputada armada encenou reação a uma falsa violência. Lembrei-me de “O nascimento da nação”, filme de propaganda supremacista branca lançado em 1915 e financiado pelo governo estadunidense da época. Na película, com muita violência racial e blackface, uma mocinha branca preferia pular de um precipício e morrer a ser atacada por um soldado negro, que era encenado por um ator branco.
O episódio brasileiro da parlamentar armada perseguindo um homem negro em praça pública, exigindo sua rendição, simboliza a vingança da mocinha supremacista branca. Ela usa sua própria arma para proteger a si mesma da suposta ameaça que os homens negros representam. Longe de ser ficção, essa cena denuncia a impunidade que ainda favorece a parlamentar e mostra que projetos políticos na linha “povo livre é povo armado” têm caça e caçadores muito bem definidos.
Mas não parou por aí. No dia seguinte ao resultado das urnas, o silêncio do presidente derrotado deixava ainda mais ansiosa uma horda disposta a avançar sobre a democracia, o Supremo e civis. O Sul se tornou o epicentro de expressões de um supremacismo branco brasileiro que podia ser visto em todos os lugares. O ódio contra nordestinos encontrou na internet seu palco. Discursos de pureza racial, eugenia, ataques a pessoas, instituições e grupos identificados como petistas foram vistos nas estradas, nas ruas, na frente dos quarteis e supreendentemente, nas escolas.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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