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Uma analogia frequentemente usada para falar de divulgação científica descreve o cientista como um ser enclausurado em uma torre de marfim isolada do resto da sociedade. A metáfora costuma ser a deixa para defender que ele tem o dever de descer da torre ou construir pontes para compartilhar o conhecimento produzido na academia com o cidadão comum.
Da minha parte, nunca consegui ouvir essa história sem deixar de achá-la pra lá de arrogante. Implícitas na analogia estão a disparidade de altura entre o cientista e sua audiência, e a ideia de que o conhecimento deva fluir da torre para o chão – e não no sentido contrário. Para mim, porém, a parte mais estranha da história é a própria ideia de que a pesquisa acadêmica seja representada por uma torre de marfim: uma estrutura sólida, robusta e imaculada.
Não pretendo aqui desconstruir o empreendimento científico como um todo: é óbvio que sabemos algumas coisas com um grau muito alto de certeza. Computadores, celulares e bombas atômicas estão aí para provar o sucesso acachapante das leis da física em fazer previsões sobre a realidade. Da mesma forma, ninguém discutiria no meio médico que antibióticos são capazes de matar bactérias, ou que a insulina salvou a vida de milhões de diabéticos.
Ao mesmo tempo, porém, quase um século de estudos sobre nutrição não conseguiram responder questões básicas como se é melhor basear uma dieta em carboidratos ou lipídeos . Décadas de investimento na neurobiologia dos transtornos mentais tiveram um impacto negligível na saúde mental das populações. E bilhões de dólares investidos em pesquisa básica sobre Alzheimer se converteram em praticamente nada de útil na clínica. Em algumas áreas da ciência, ao menos, a tal torre de marfim está mais para um castelo de cartas.
Os defensores da ciência serão rápidos em argumentar que o fracasso desses campos – ao menos numa escala temporal de décadas – não é necessariamente uma mácula no currículo da pesquisa acadêmica. Alguns problemas são simplesmente difíceis, e é perfeitamente possível que a qualquer momento essas décadas de investimento em pesquisa comecem a trazer seu retorno para a sociedade.
É difícil sustentar a ideia de que a torre da ciência de fato é de marfim – ou negar que seu telhado de vidro tem se tornado um prato cheio para invasores
Para quem observa a torre do lado de dentro, porém, a percepção de que as paredes não são de marfim vêm do modus operandi da pesquisa acadêmica, mais do que dos seus resultados. Nosso sistema de controle de qualidade – a tal “revisão por pares” – consiste em pitacos aleatórios de acadêmicos anônimos sobre artigos científicos, que por sua vez são relatos incompletos e enviesados da pesquisa realizada. Por preguiça ou egoísmo, a maior parte dos pesquisadores é incapaz de compartilhar dados , mesmo quando estes são obtidos com dinheiro público. Nosso sistema de incentivo – que valoriza impacto e originalidade de trabalhos sem checar se eles falam a verdade – parece ter sido desenhado para incentivar picaretas. Não por acaso, as taxas de reprodutibilidade de artigos individuais em diversos campos da ciência são em geral bem menores do que se esperaria .
Mais do que isso, quase nada na organização da pesquisa acadêmica foi realmente testado ou baseado em evidência empírica – num caso clássico de “casa de ferreiro, espeto de pau”. Tradições históricas e convenções , mais do que dados ou experimentos, tendem a reger a forma com que laboratórios, instituições e agências de fomento funcionam. Em um sistema regido pela inércia mais do que pela lógica, o surpreendente é que a ciência acabe acertando com a frequência que acerta, e não o contrário.
Olhando tudo isso, é difícil sustentar a ideia de que a torre da ciência de fato é de marfim – ou negar que seu telhado de vidro tem se tornado um prato cheio para atrair invasores. A maior parte do discurso dito “negacionista” , afinal, não se propõe a negar o método científico, e sim alvejar a academia em seus pontos fracos. Na área médica, por exemplo, proponentes de verdades alternativas costumam apontar a falta de transparência de dados e os conflitos de interesse pra lá de reais da pesquisa clínica com a indústria farmacêutica para questionar o conhecimento acadêmico e impor suas próprias visões .
Do lado contrário, a reação a esse movimento simplifica drasticamente o grau de dúvida existente na maioria dos debates acadêmicos, construindo um discurso tatibitate de “ siga a ciência ” ou “ a ciência não tem dois lados ” que pouco tem de científico. A terra de fato é redonda e possui um lado só – mas fingir que qualquer previsão sobre a pandemia feita em 2020 poderia ter esse grau de certeza simplesmente alimenta o discurso conspiracionista de que há um esforço da ciência “oficial” para censurar diletantes e encobrir a verdade.
Pior ainda, a prática de descer da torre para debater na planície – uma prática cada vez mais comum no mundo online – tem dado resultados no mínimo questionáveis. A situação é análoga à da esfera da política, em que a democratização de opiniões trazida pelas redes sociais deságua em uma cacofonia que, no limite, se vira contra as instituições que sustentam a democracia . Da mesma forma, o debate público acalorado de temas científicos costuma levar a ciência a ser atropelada pela polarização militante, à qual cientistas não são em nada mais imunes do que os demais seres humanos.
Depois de dois anos seguindo cientistas na pandemia, a impressão que fica é a de que grande parte deles – com algumas exceções honrosas – teria feito melhor ficando na tal torre de marfim. Adicionar vozes ao caldeirão de barulho, afinal, reforça coros homogêneos e tribalizados, e a defesa da ciência nas redes tende facilmente a se transformar em apenas mais um deles. Ao invés de gastar caracteres no Twitter, talvez valha mais lutar por sociedades científicas e agências regulatórias mais ágeis em mudar de opinião , mais eficientes em comunicar consensos de forma clara , e menos suscetíveis a interesses políticos e financeiros .
Por tudo isso, no momento que estreio essa coluna, minha impressão é de que a pesquisa acadêmica tem muitos problemas a resolver – e minha intenção, mais do que propagandeá-la, é me debruçar sobre suas mazelas. Que ninguém pense, porém, que estou descendo da torre de marfim para fazê-lo. Pelo contrário, sempre estive falando ao rés-do-chão: se há alguma torre nessa história, meu intuito é ajudar a construí-la.
Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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