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Agenda 227

‘Menor’: uma expressão extinta que reapareceu na Câmara

21 de fevereiro de 2023

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Alusão ao extinto ‘Código de Menores’ em comissão da Câmara dos Deputados acende alerta para condução do debate sobre direitos das crianças e adolescentes

Data de 1927 o termo controverso escolhido, em pleno século 21, para denominar crianças e adolescentes numa Comissão da Câmara dos Deputados que será um dos principais espaços no Legislativo para fiscalizar políticas públicas e debater proposições que garantam os direitos de meninas e meninos. Uma resolução alterou, no início de fevereiro, o regimento interno da Câmara e transformou a antiga Comissão de Seguridade Social e Família na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família. No mesmo texto, os deputados listam o “direito de família e do menor” entre os assuntos de atribuição da nova Comissão, numa alusão ao extinto “Código de Menores”.

“Menor” é expressão extinta do arcabouço jurídico brasileiro desde a Constituição Federal de 1988 e do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), de 1990. Essa alteração normativa introduzida na redemocratização não foi meramente uma mudança de nomenclatura, mas uma verdadeira mudança de paradigma.

Ainda é necessário dar muitos passos para conquistar espaços fortalecidos para a infância e para a adolescência no Legislativo

Os diferentes Códigos de Menores que vigoraram no país até 1988 adotavam a doutrina da situação irregular, atuando com crianças e adolescentes quase que exclusivamente para responder a casos de abandono, violência, negligência ou ato infracional. É como se, até então, para o Estado brasileiro a população de 0 a 18 anos só existisse nesses casos. Como resultado, além da falta de políticas públicas efetivas para garantir direitos dessa população, havia forte estigmatização, cujos ecos se fazem presentes ainda hoje. O “menor” era sempre – e para muitos ainda é – o adolescente negro, pobre e em situação de vulnerabilidade ou em conflito com a lei.

A Constituição de 1988 e o ECA, frutos de intensa mobilização da sociedade, são considerados marcos importantes para as crianças e adolescentes no Brasil porque romperam com a lógica tutelar e o caráter discricionário dos antigos Códigos de Menores, que favoreciam a violação de direitos fundamentais de meninas e meninos. Essas legislações mais recentes trouxeram consigo a doutrina da proteção integral para crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, sendo esta uma responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade, a fim de garantir os direitos dessa população, que se encontra em momento especial de desenvolvimento. Em outras palavras, a população de 0 a 18 anos ganha, pela primeira vez, o status de cidadã, de sujeito de direitos.

A retomada do passado “menorista” para tratar de crianças e adolescentes na atual legislatura da Câmara dos Deputados acende um alerta quanto à visão que orientará a atuação dos parlamentares no colegiado. São mais do que palavras. O cenário político brasileiro tem se mostrado pouco propício ao avanço de pautas que aprofundem progressos sociais e direitos fundamentais. A perspectiva, aliada ao atual perfil mais conservador da composição do Congresso Nacional, preocupa a sociedade civil porque aponta para uma visão contrária ao ECA e à garantia de direitos de meninas e meninos. Isso tudo justamente num momento em que a população de 0 a 18 anos enfrenta grandes retrocessos de seus direitos, evidenciados por diversos indicadores fragilizados, como vacinação, acesso à escola, alimentação adequada e combate às várias violências.

Criar respostas legislativas para essa situação demanda sensibilidade e, principalmente, respeito ao artigo 227 da Constituição Federal e às determinações do ECA. A recém-criada Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família terá de tratar de temas como combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, ao trabalho infantil, saúde mental de crianças e adolescentes e a ampliação de recursos públicos para políticas que atendam a essa população – hoje sem qualquer protagonismo nas leis e planos orçamentários do país. Não há espaço, ou não deveria haver, para promoção do pânico moral usando crianças e adolescentes como escudo e para perspectivas anticientíficas ou discriminatórias para tratar de problemas urgentes para as novas gerações.

Ainda é necessário dar muitos passos para conquistar espaços fortalecidos para a infância e para a adolescência no Legislativo e, também, no Executivo. Já convivemos historicamente com o enorme desafio que é ter o tema da infância e da adolescência diluído em diversos espaços do Poder Público. No Executivo, em inúmeras pastas que não se articulam entre si e, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, em comissões em que o melhor interesse de crianças e adolescentes e suas especificidades não são necessariamente considerados pelos parlamentares que nelas atuam. Espera-se, ao menos, que a nova comissão tenha cautela e cuidado ao tratar de pautas caras para as vidas de meninas e meninos, atuando com transparência e abrindo espaço para participação da sociedade civil contribuir com esses debates.

Um passado lamentável ressurge nas entrelinhas das atribuições da nova Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família. A escolha lexical na definição das atribuições do colegiado – que por sua vez aponta uma escolha de paradigma – nos indica o que pode estar por vir. Como cidadãos, precisamos estar vigilantes e atuantes para que nenhum passo para trás seja dado e para que os deputados que venham a integrar a comissão tenham não apenas respeito à Constituição Federal e ao ECA, mas também a dimensão exata de sua responsabilidade histórica neste momento.

Ana Potyara Tavares é advogada e diretora administrativa financeira da ANDI – Comunicação e Direitos. Foi coordenadora-adjunta da Rede Nacional Primeira Infância e atualmente é membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/SP. Integra a equipe executiva do movimento Agenda 227

Thaisi Bauer é advogada, especialista em Ciências Penais e Secretária Executiva da Coalizão pela Socioeducação, que integra a coordenação do movimento Agenda 227.

Agenda 227é um movimento apartidário da sociedade civil brasileira que tem como objetivo colocar crianças e adolescentes no centro da construção de um Brasil mais justo, próspero, inclusivo e sustentável para todos, a partir da concretização da prioridade absoluta garantida à população de 0 a 18 anos pelo artigo 227 da Constituição Federal.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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