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Quem vê os pedidos de desculpas do vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel, que agora clama choroso pela compaixão da opinião pública, pouco o associaria com o representante público eleito que, com largo conforto e convicção, subiu ao plenário da Câmara da sua cidade mais de uma vez para proferir discursos que nos remetem ao escravismo e colonialismo contra pessoas negras e indígenas.
No início de 2023, a sociedade brasileira, ou pelo menos boa parte dela, assistiu estarrecida às condições de vida do povo yanomami na Amazônia, em grave estado de desnutrição, inclusive de muitas crianças. Naquele momento, o vereador não perdeu a oportunidade de levantar suspeitas sobre a ação do governo federal. No dia 8 de fevereiro, Fantinel subiu à tribuna da Câmara do seu município para tecer especulações sobre a suposta ajuda rápida e preocupação“ excessiva” do governo federal em relação aos povos originários daquela região , em detrimento do povos indígenas do restante do país, sobretudo do Sul. Deslocando o foco do debate, a fala maldosa do vereador tentava levantar suspeitas sobre uma situação que exigia uma ação urgente dos poderes públicos.
As últimas falas do vereador, já amplamente divulgadas pela imprensa, não precisam ser repetidas aqui, e nós as conhecemos cotidianamente, seja no Sul do país, Sudeste ou mesmo no Nordeste, proferidas da boca das pessoas privilegiadas da região. Elas são imbuídas de preconceito regional e xenofobia, que se aprofundaram ainda mais depois do resultado das eleições, quando o voto nordestino foi definidor ao afastar o Brasil do atraso e do obscurantismo completo.
Mas esse ódio do Nordeste é anterior, e para fazer referência direta à fala do vereador, o desprezo pelos baianos, sobretudo num contexto escravista, seja no século 16, no século 19, na República Velha ou no Brasil de 2023, é racializado. Quero dizer que falar em baianos supostamente sujos, porcos, malcheirosos e preguiçosos, que passam o dia na praia tocando tambor e fazendo festa (antes fosse), nos transporta ao “medo branco” do século 19, que justificava a escravidão, a exploração, o controle e, claro, a violência.
Baiano, na boca de quem flerta com a supremacia branca, ou é pelo menos conivente com o racismo, é sinônimo de negro, e negro, ainda no Brasil atual, é sinônimo de escravo.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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