Coluna
Vanessa Adachi
Salton, Carrefour e Shein: o ESG está além dos próprios muros
Temas
Compartilhe
O que as vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi têm a ver com Carrefour e Shein?
Há um mês, as três fabricantes de vinho gaúchas protagonizaram um escabroso caso de trabalho análogo à escravidão praticado por uma empresa terceirizada que prestava serviços de colheita de uva.
Dois anos atrás, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, foi morto por um segurança terceirizado enquanto fazia compras numa loja da rede de supermercados em Porto Alegre.
Já a varejista de ultra fast fashion chinesa, febre entre jovens do mundo todo, que sempre escondeu como produz as roupas que vende a preços imbatíveis, foi alvo de uma investigação da ONG Public Eye que mostrou que trabalhadores das confecções contratadas pela Shein trabalham em condições extremamente precárias , para dizer o mínimo.
Em comum, os três casos dizem respeito a grandes empresas com problemas de más condutas e crimes praticados não por elas diretamente, mas por fornecedores de serviços e mercadorias contratados por elas.
Uma reação comum das empresas quando algo assim emerge e se transforma em crise reputacional é alegar desconhecimento do que se passa na sua cadeia de valor.
Controlar o que acontece na cadeia de valor é tarefa das mais complexas, mas que não deve ser negligenciada e precisa começar de algum lugar
Mas, em pleno século 21, num mundo conectado, tecnológico e cada vez mais exigente em relação às externalidades negativas causadas pelos negócios, essa é uma justificativa que não cabe mais.
Sem entrar no mérito da gritante ilegalidade, é inaceitável que uma empresa venda uma roupa ou um vinho produzido às custas de trabalho escravo – idem para poluição de rios, derrubada de florestas e outros danos ambientais.
É dever das empresas conhecer o que acontece em todos os elos da sua cadeia de fornecimento.
O desconhecimento abre espaço para degradação ambiental e também alimenta ilegalidades como o trabalho análogo à escravidão, mas não só.
No caso do garimpo ilegal na Amazônia, o ouro ali extraído foi parar em celulares e computadores da Apple e da Microsoft e em servidores do Google e da Amazon, como mostrou investigação jornalística do site Repórter Brasil.
O rastreio da cadeia é hoje considerado uma boa prática corporativa, especialmente para aquelas que dizem ter uma política ESG (sigla em inglês para ambiental, social e de boa governança). Aqui cabe uma explicação breve para quem não acompanha esse universo. O conceito de ESG surgiu primeiro no mundo das finanças, como ferramenta para que os investimentos pudessem ser avaliados não apenas pelos resultados financeiros, mas também pelas práticas ambientais, sociais e de governança. Porque os donos do dinheiro pressionam as empresas em que investem, mas também por pressão da sociedade, o termo foi amplamente incorporado pelas empresas para representar o conjunto das suas políticas socioambientais e de boa governança.
No caso dos compromissos voluntários para redução da emissão de gases de efeito estufa para ajudar a combater a crise climática, por exemplo, a cadeia de valor é, via de regra, o aspecto principal a ser trabalhado.
Estudos mostram que, para a maioria das empresas, as emissões de fornecedores e consumidores respondem por 65% a 95% das emissões totais. Ou seja, não existe net zero sem medir e mitigar a pegada de carbono da cadeia de valor.
Rastrear e controlar o que acontece na cadeia de valor é tarefa das mais complexas, mas que não deve ser negligenciada e precisa começar de algum lugar.
Hoje existem tecnologias que viabilizam o trabalho. É o caso, por exemplo, do rastreio da cadeia da carne para combater o desmatamento.
O primeiro passo é mapear a realidade atual para, então, estabelecer políticas e metas claras, oferecendo orientação. Por fim, precisam existir mecanismos de incentivo e punição. Para quem não se adequa, a resposta tem que ser o desligamento.
Quanto a nós, enquanto consumidores, cabe passar a questionar sobre os caminhos percorridos por um produto – ou serviço – que chega até as nossas mãos. As roupas que vestimos e os alimentos e bebidas que consumimos se valeram de práticas que nutrem a desigualdade social e a degradação ambiental?
Afinal, somos o último elo da cadeia, aquele que justifica a existência de todos os demais – e isso é muito poderoso.
Vanessa Adachi é cofundadora e editora-chefe da Reset, um veículo digital e independente que cobre a transformação do capitalismo e negócios e investimentos que buscam soluções para os desafios ambientais e sociais da atualidade. Ela tem mais de 25 anos de experiência cobrindo negócios e finanças. Foi editora executiva, editora de finanças e repórter especial do Valor Econômico. Antes disso, trabalhou na Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil e Editora Abril. É jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com MBA em Finanças, Comunicação e Relações com Investidores.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
Navegue por temas