Coluna

Januária Cristina Alves

Tudo junto e misturado: nossa vida ‘on-life’

28 de abril de 2023

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Por que precisamos da vida virtual para nos refugiarmos da nossa vida real, criando personagens fictícios e nos expressando de uma maneira completamente diferente do que fazemos fora das telas?

As mídias sociais são o assunto do momento. Tomaram conta do debate público e preocupam corações e mentes dos cidadãos que têm alguma consciência do seu impacto em nosso cotidiano. Faz tempo que a vida online segue assim, “tudo junto e misturado”, com a offline. Como os seres humanos são feitos de carne, sangue e interações sociais, ficou difícil administrar vidas tão distintas. Daí que o cerne do problema é regular essa vida do lado das telas tal como fazemos do lado de cá, sob pena de não termos mais vida nenhuma, como nos mostram as notícias frequentes de ataques violentos à nossa existência.

Agora é hora – acho que até já passou da hora! – não apenas de focar na regulação das mídias, mas sobretudo de repensarmos a nossa relação com elas. Afinal de contas, demonizá-las não resolve nada, porque, ao fim e ao cabo, nós é quem fazemos as mídias sociais, elas são produto e reflexo da sociedade que somos e criamos. “Não há como conceber a sociedade do futuro sem tecnologia. Então, se não pode vencê-la, una-se a ela”, disse o sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman. “É preciso ter determinadas qualidades se você deseja construir conhecimento e não agregá-lo: paciência, atenção e a habilidade de ocupar esse local estável, sólido, no mundo que está em constante movimento”.

Foi o filósofo da informação, o italiano Luciano Floridi, que cunhou o termo “on-life”, afirmando que o uso amplo e generalizado de diversas tecnologias digitais está turvando as fronteiras dos mundos on e offline, fazendo emergir uma terceira realidade. Esse mundo “on-life”, é constituído tanto pelo que acontece no âmbito material quanto no digital, revelando-se como uma esfera híbrida na qual ainda não sabemos nos movimentar. Desconectar-se desse universo ainda pouco conhecido tornou-se um dos grandes desafios da modernidade, porque percebemos que estamos conectados 100% do nosso dia. Mesmo que desliguemos os celulares, tablets e computadores, eles nos vigiam pelo toque, movimento e voz, sensíveis a tudo o que faz parte de nós, tal como o Grande Irmão de George Orwell. Assombrados por esse personagem tão simbólico, seguimos em busca de leis e manuais de sobrevivência que nos garantam uma vida sustentável.

A regulação das plataformas e outras medidas que protejam as fronteiras do direito à vida, à liberdade de expressão e outros direitos fundamentais passa por essa questão. Precisamos observar como estamos nos comportando na internet e quais os desafios que se colocam para nós, seres humanos. Uma educadora de uma grande escola paulistana me escreveu, angustiada: “Estamos muito preocupados aqui na escola com a questão do uso dos eletrônicos em contraponto ao esgarçamento dos laços sociais”. Em nossa rápida conversa comentamos que é somente pelo fortalecimento e a (re)conexão desses laços que conseguiremos vencer a violência, a desinformação, as doenças do corpo e da alma, infelizmente tão presentes nesse universo “on-life”. Essa é, sem dúvida, uma grande questão que se coloca nesse momento em que vivemos. Como retomar a nossa vida em comunidade, o olho no olho, os abraços e contatos reais? Achamos que o final da pandemia nos devolveria essa convivência, mas não é isso que está acontecendo.

Em uma de suas colunas , o advogado e colunista do jornal Folha de S. Paulo Ronaldo Lemos nos apresenta o problema com bastante clareza: “As mídias sociais e nosso celular funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a se materializar, partimos para o mundo confortável e controlado do celular, que nos distrai do que é verdadeiramente humano.” Lemos chama esse fenômeno de “intimidade artificial”, atribuindo o conceito à psicoterapeuta Esther Perel. “Seu argumento é que estamos vivendo nossas vidas em permanente estado de atenção parcial. Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção está sempre dividida entre as pessoas e o nosso celular, mídias sociais, alertas de mensagem e assim por diante. Nesse contexto não é possível intimidade real”. Pois é, a tal vida “on-life” é uma vida dividida e, como estamos vendo, não há plenitude possível nem lá e nem cá.

Precisamos nos perguntar porque precisamos dessa vida virtual para nos refugiarmos da nossa vida real. Porque ainda precisamos criar personagens fictícios para exibir uma vida que não é nossa. E quais são as razões pelas quais nos expressamos nas redes – o discurso de ódio online está aí para evidenciar isso – de uma maneira completamente diferente do que fazemos em casa, na escola, na vizinhança. Segundo a pesquisadora norte-americana Sheila Liming estamos vivendo uma “catástrofe silenciosa”, pois estudos recentes dão conta de que os jovens têm se sentido mais sozinhos do que os mais velhos (ela lembra que mesmo antes da pandemia 60 milhões de americanos já diziam sentirem-se solitários ou isolados socialmente). São mostras de que as novas configurações trazidas por esse universo híbrido nos apartam das interações com o outro, impactando profundamente os nossos laços comunitários. Inquieta, ela indaga: “perdemos a capacidade de fazer amigos?”. Está aí uma boa pergunta para começarmos a responder nas redes e fora delas, aqui e agora.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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