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O ano era 1993 e eu havia concluído, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, minha tese de mestrado sobre o jornal escolar como possibilidade de expressão e leitura crítica do mundo. No jornal Folha de S.Paulo, a educadora Flávia Aidar concebia e lançava o Programa Folha Educação, voltado para disseminar a prática da leitura do jornal em sala de aula de maneira multi e transdisciplinar. Na época, alguns jornais no mundo acreditavam que era preciso formar novos leitores dessa mídia, que estava ameaçada de extinção (ameaça que hoje parece mais concreta, pois já vemos muitos jornais impressos extintos ou sendo substituídos exclusivamente pelas edições digitais), e investiam em programas desse tipo. Esse da Folha durou 13 anos, nos quais tive a oportunidade de colaborar sendo editora de um jornal do mesmo nome, cujo objetivo era subsidiar os educadores em seu trabalho em sala de aula, e ministrando algumas das oficinas de formação, que ocorriam duas vezes por ano, na sede do jornal. Até hoje encontro educadores que passaram por essas formações e relatam como foi importante tomar contato com essa mídia e refletir sobre as diversas maneiras de usá-las em sua prática pedagógica. Se o texto jornalístico sempre foi conteúdo de língua portuguesa, abordado como gênero textual, a possibilidade de utilizá-lo como fonte para outras disciplinas abriu caminho para o que hoje se entende como Educação Midiática.
Se o texto jornalístico sempre foi conteúdo de língua portuguesa, a possibilidade de utilizá-lo como fonte para outras disciplinas abriu caminho para a Educação Midiática
De lá para cá as mídias sofreram uma verdadeira revolução trazida pela popularização da internet e, a partir daí, a necessidade de compreender não apenas como elas funcionam, mas de analisar criticamente seus conteúdos e como moldam a nossa cultura e formas de ser e compreender o mundo, tornou-se imperativa. Em 2010, a Unesco lança seu programa de formação de professores para a Alfabetização Midiática e Informacional, declarando que ela “…refere-se às competências essenciais (conhecimentos, habilidades e atitudes) que permitem que os cidadãos engajem-se junto às mídias e outros provedores de informação de maneira efetiva, desenvolvendo o pensamento crítico e a aprendizagem continuada de habilidades, a fim de socializarem-se e de tornarem-se cidadãos ativos.” Aqui no Brasil, a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) também atualizou sua compreensão sobre o uso das mídias como objeto de ensino e aprendizagem e em seu campo “jornalístico-midiático” destaca que “para além de construir conhecimentos e desenvolver habilidades envolvidas na escuta, leitura e produção de textos que circulam no campo, o que se pretende é propiciar experiências que permitam desenvolver nos adolescentes e jovens a sensibilidade para que se interessem pelos fatos que acontecem na sua comunidade, na sua cidade e no mundo e afetam as vidas das pessoas, incorporem em suas vidas a prática de escuta, leitura e produção de textos pertencentes a gêneros da esfera jornalística em diferentes fontes, veículos e mídias, e desenvolvam autonomia e pensamento crítico para se situar em relação a interesses e posicionamentos diversos e possam produzir textos noticiosos e opinativos e participar de discussões e debates de forma ética e respeitosa”.
Mais de uma década se passou e vemos que os objetivos de tais programas e diretrizes são fundamentais, mas que ainda estão longe de serem concretizados. Como afirma o professor David Buckingham em seu “Manifesto pela Educação Midiática ” recém-lançado aqui no Brasil pelas Edições Sesc, livro que tive o privilégio de indicar a tradução e escrever o prefácio, muito se fala sobre essas possibilidades, mas pouco se realizou a partir desses discursos. Para ele, a Educação Midiática só será efetiva se fizer parte de uma política pública, com programas “abrangentes, sistemáticos e duradouros” e sobretudo, se envolver os professores para que sintam-se parte deles, e ainda se puder contar com a regulação da mídia. Ele frisa: “esses problemas não são fáceis de solucionar. Essas mídias são globais, o que exclui a maior parte das tentativas de regulação por governos nacionais. A liberdade de expressão também é uma questão complicada: precisamos pensar quanta liberdade nós queremos e precisamos – e se realmente temos liberdade neste momento, para começar”.
Aqui no Brasil, país repleto de desafios e possibilidades não apenas na educação mas em todas as áreas que envolvem o bem-estar e a equidade social, persistimos na criação de programas que incluam a Educação Midiática na formação integral dos professores e por meio deles, das crianças e jovens. Acabou de ser lançada uma Consulta Pública para a implantação da Política Nacional de Educação Midiática pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, que elaborou um conjunto de eixos de atuação para nortear sua política pública de educação midiática. “Nosso objetivo é alcançar, mobilizar e receber contribuições críticas e sugestões de diversos setores, incluindo a sociedade civil, movimentos sociais, universidades e demais instituições e órgãos públicos e privados, além de coletivos e indivíduos engajados no tema, a fim de enriquecer as iniciativas planejadas para implementação nos próximos anos, com participação social e transparência”, diz o texto que ficará disponível para o acesso público e recebimento das contribuições até o dia 15 de junho. Trata-se de um avanço a ser comemorado e, sobretudo, um passo à frente diante de tudo o que já foi feito até aqui, uma vez que a Coordenação Geral de Educação Midiática entende que esse é um assunto que diz respeito a toda sociedade brasileira. Em sua concepção, a política pública deverá envolver os Ministérios dos Direitos Humanos, da Educação e da Saúde, o que referenda a transversalidade do tema. Além do governo federal diversos estados têm se mobilizado para a implementação dessa política pública, como o Rio de Janeiro que, por meio do Projeto de Lei 4791/20 de autoria do deputado Carlos Minc, estabelece o Programa de Educação Midiática nas Escolas Estaduais. Ele se inspirou nas políticas públicas da Finlândia, país que é referência mundial nesse assunto.
É importante celebrarmos essas conquistas, inclusive o chamado PL 2630 – apelidado de PL das Fake News – que mesmo com tantas questões complexas e polêmicas, busca avançar em direção à regulação das mídias, aos direitos das crianças e jovens no ambiente digital e em outras demandas urgentes para um uso ético e sustentável da internet e das mídias sociais. O Brasil ainda amarga índices preocupantes de analfabetismo funcional e não podemos nos esquecer de que a questão central da Educação Midiática passa pelo desenvolvimento das habilidades que permitem uma leitura crítica do mundo em que vivemos. Lá em 1993, no prefácio dos cadernos Folha Educação, que subsidiavam o professor no uso do jornal em sala de aula, o jornalista Gilberto Dimenstein já afirmava: “o bom educador deve estimular a diversidade, torcendo para que seus alunos tenham suas próprias ideias. E mais do que isso, tenham a coragem de defendê-las, devidamente fundamentadas, em qualquer situação”. O mestre Paulo Freire sempre ensinou que a “leitura do mundo é a competência das competências” e isso continua sendo, mais do que nunca, a razão de ser da educação.
Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
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