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O Plano Nacional de Pós-Graduação 2021-2030 está atualmente em elaboração por uma comissão de especialistas. Com quase dois anos de atraso depois da bagunça do governo Bolsonaro, o documento pretende traçar estratégias para a pós-graduação brasileira na próxima década.
Enquanto o plano não sai, fui dar uma folheada na edição de 2011-2020 , um calhamaço de mais de 900 páginas em dois volumes que descrevem o panorama da pós-graduação em 2010, as metas de expansão para a década passada, os desafios na avaliação dos programas e as prioridades em diferentes áreas de pesquisa. Ainda assim, ele é curiosamente lacônico em definir o que é a pós-graduação ou para que ela serve – talvez porque isso pareça óbvio para os acadêmicos que o escreveram.
Mais generoso com leigos, o site da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) informa que um doutorado “certifica a capacidade de uma pessoa para desenvolver pesquisas em uma determinada área da ciência” – uma definição razoável com a qual boa parte das pessoas concordaria. A ideia do doutorado como diploma de pesquisa tem pelo menos dois séculos de idade, e costuma ser atribuída ao ideal humboldtiano de universidade nascido na Prússia no início do século 19.
A história do título de doutor, porém, vem de ainda mais longe, e se apoia nas permissões para lecionar concedidas por universidades na época medieval: de acordo com o pesquisador Keith Allan Noble , o primeiro diploma do gênero de que se tem notícia data da França de 1150. Previsivelmente, as maneiras de obtê-lo foram definidas na época, e derivam do modelo de aprendizado supervisionado das guildas medievais , em que mestres treinavam aprendizes em seu próprio ofício – o que por sua vez reflete a forma com que tal conhecimento era transmitido de pai para filho.
A principal adaptação das universidades, ao aplicar esse sistema para a geração de conhecimento, foi passar a exigir um documento escrito, em que o candidato ao diploma defendesse uma tese – que na Idade Média geralmente era de natureza teológica. Com a criação do doutorado de pesquisa, passou-se a esperar-se da tese uma contribuição original que avançasse o conhecimento em determinada área de pesquisa. A ideia do aprendizado individual sob supervisão de um orientador, porém, permaneceu inalterada.
Passados 200 anos, o modelo segue de pé – seja por sucesso ou por inércia. É evidente, porém, que o mundo ao redor mudou bastante de lá para cá.
A primeira mudança que importa é a razão da existência do doutorado. Desde suas origens, o título é tradicionalmente visto como uma preparação para a carreira acadêmica – fazendo jus ao modelo de aprendizado das guildas em que, ao final do treinamento, o aprendiz ganhava uma função semelhante à do seu mestre.
O conceito persiste no imaginário de muitos ; na prática, porém, ele foi implodido pelo mercado . A expansão rápida da pós-graduação na segunda metade do século 20 – que se intensificou no Brasil a partir dos anos 1990 – fez com que o número de vagas acadêmicas na maior parte do mundo se tornasse insuficiente para absorver mais do que uma minoria dos doutores formados . Isso leva à conclusão óbvia de que um doutorado precisa ensinar habilidades que sejam úteis fora da academia – ainda que boa parte dos cursos ou orientadores não saiba muito bem como fazê-lo.
A segunda mudança que importa aconteceu na pesquisa. No mundo ancestral em que o doutorado e a tese nasceram, a ciência era feita por figuras trabalhando em isolamento, geralmente de forma solitária, em campos pouco explorados do conhecimento. Nesse mundo, o modelo de iniciação através do trabalho pessoal era apenas óbvio – que outro caminho haveria, afinal?
Passados 200 anos, o modelo do doutorado segue de pé – seja por sucesso ou por inércia. É evidente, porém, que o mundo ao redor mudou bastante
Novamente, essa visão de ciência persiste no imaginário popular – e no conceito de autoria que ainda orienta a publicação e o reconhecimento científico. Na prática, porém, o trabalho individual é um conceito raro em uma ciência cada vez mais conectada e colaborativa. Projetos em áreas de alta complexidade como a física de altas energias há tempos possuem centenas ou milhares de autores , listados em ordem alfabética com suas respectivas contribuições – e a tendência cada vez mais se espalha para outros campos.
Nesse mundo, faz sentido que o treinamento para trabalhar em pesquisa siga requerendo de cada pessoa uma contribuição original, própria e solitária ao conhecimento de sua área? Seria essa formação realmente indispensável – ou suficiente – para todo e qualquer cientista? Não seria possível que o mundo de hoje exija outras habilidades mais relevantes e diversas de seus pesquisadores?
Se minha experiência serve para alguma coisa, estamos em vias de concluir uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica nacional, a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade . O projeto foi desenvolvido por quase 200 pessoas em 58 laboratórios, coordenadas por uma equipe de seis pessoas na qual estou incluído. Todos nós somos acadêmicos treinados – ou em treinamento – dentro desse modelo de pós-graduação, cujo pré-requisito é demonstrar uma contribuição individual ao conhecimento.
O resultado? Bom, pense no que aconteceria se você pegasse 200 pessoas que aprenderam a cozinhar com seus pais e as colocasse para administrar uma cadeia de restaurantes com 58 franquias.
Não há dúvida de que a gente se virou , e conseguiu chegar ao fim do projeto – que, aliás, não foi tese de ninguém. Mas isso envolveu habilidades que pouco tinham a ver com o que aprendemos trabalhando em nossas próprias teses. E eu apostaria que a jornada teria sido mais fácil se tivéssemos sido treinados em gestão de pessoas, controle de qualidade e comunicação efetiva – ou se tivéssemos vagas para gente com esse perfil dentro do meio acadêmico. Não por acaso, duvido muito que uma cadeia de restaurantes com 200 empregados tenha 200 cozinheiros – ou mesmo que saber cozinhar seja uma habilidade relevante para boa parte dos cargos.
E se esse é o caso em um projeto acadêmico de grande porte, imagino que para doutores trabalhando fora da academia as habilidades necessárias sejam ainda mais variadas. Nesse mundo, a ideia de que treinamento em pesquisa requer avançar o conhecimento através de uma tese original parece ainda mais romântica. É claro que originalidade é uma virtude desejável – mas ela é apenas uma entre uma infinidade de outras igualmente importantes.
Ainda haveria mais a dizer sobre o anacronismo do modelo de doutorado – em particular sobre a cultura de designar um único orientador – que geralmente nunca saiu do meio acadêmico – como responsável pela maior parte da formação de um doutor. Mas isso talvez seja tema para uma coluna futura – ou para uma tese sem limite de caracteres.
Meu ponto aqui é apenas que se a meta da pós-graduação é formar gente para avançar o conhecimento no século 21 – como acho que deveria ser – parece no mínimo estranho seguir treinando e avaliando nossos doutores pelos mesmos processos do século 19. Precisamos de uma base humana mais diversa, com habilidades distintas para preencher diferentes funções, e capacidade e estímulo para o trabalho em grandes colaborações .
É claro que a maior parte de nós vai acabar adquirindo essas habilidades lá pelas tantas – seja buscando treinamento em outros lugares, seja batendo a cabeça contra a parede no mundo real. Talvez por conta disso, a ciência siga avançando. Mas não haveria um jeito mais fácil de catalisar esse aprendizado durante a formação científica, se perdêssemos nossa obsessão com autoria exclusiva e teses de centenas de páginas?
Não estou dizendo que eu tenha um mapa pronto para um sistema melhor. Aliás, estou inclusive aberto à possibilidade de que o sistema de treinamento individual como aprendiz seja de fato o ideal, pelo menos para algumas pessoas. Mas parece difícil de acreditar que ele seja o único possível, ou que seja o ideal para todo mundo.
Mais do que isso, parece difícil de aceitar que a comunidade acadêmica não seja capaz de fazer essa pergunta e tentar respondê-la empiricamente, desenhando modelos diferentes e testando-os contra a alternativa vigente. Para uma classe que se orgulha de sua capacidade crítica, temos uma inércia atordoante em questionar nossas próprias práticas – não só na pós-graduação, mas também em assuntos como os sistemas de publicação , financiamento e estruturação do trabalho científico.
O resultado é que fazemos o que fazemos não porque encontramos o sistema ideal, mas porque sempre fizemos assim e não testamos muita coisa diferente. E eu ao menos me pergunto se isso não tem a ver com sermos treinados em um sistema medieval burocratizado e hierárquico, com poucas oportunidades de observar como outras atividades humanas se organizam.
Em um artigo extenso, brilhante e não publicado em revista científica alguma, o físico Michael Nielsen e a empresária de tecnologia Kanjun Qiu argumentam que a ciência precisa de “empreendedores em metaciência” – indivíduos capazes de pensar, propor e testar alternativas para o sistema científico. Eu concordo bastante com eles, e estudar a forma com que preparamos pessoas para carreiras em ciência me parece um dos primeiros alvos.
Não por acaso, também ajudo a organizar o No-Budget Science Hack Week , um hackathon estendido de metaciência – que, aliás, já usava o mote de “empreendedorismo acadêmico” bem antes de Nielsen e Qiu. Nossa edição de 2023 está com inscrições abertas para o evento e os debates que o acompanham , e pretende desenvolver projetos colaborativos para estudar, questionar e melhorar a carreira acadêmica. Que fique claro, essa coluna não foi apenas uma desculpa para divulgar isso. Mas uma coisa e outra nascem da mesma inquietação, que espero que não seja só minha.
Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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