Coluna
Januária Cristina Alves
Tecnologias digitais na escola: regular é melhor que proibir
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Há quase 10 anos, em uma palestra que ministrou para o “Encontro Internacional Educação 360º”, aqui no Brasil, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman já anunciava o cenário que vemos hoje: nossa vida tornou-se inviável sem o uso das tecnologias digitais – especialmente o celular e o computador – que permitem que a gente se informe, locomova, trabalhe e se relacione (com as devidas ressalvas). Na Modernidade Líquida – conceito cunhado por ele, que define a época em que vivemos como marcada pela rapidez e volatilidade nas relações sociais – é preciso saber lidar com essa “liquidez” e, ao mesmo tempo, ser capaz de “construir conhecimento” e ter “habilidade para ocupar esse local estável, sólido, no mundo que está em constante movimento”, afirmou. E se a escola é o lugar onde a vida acontece, onde se aprende e se ensina a viver em comunidade, não há como excluir as tais TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação) das salas de aula sob pena de aprofundarmos mais ainda as desigualdades que dividem os seres humanos entre cidadãos com direitos e deveres, e invisíveis, que invariavelmente estão excluídos da sociedade.
Isto posto, a questão que se coloca é como lidar com elas no cotidiano escolar, inserindo-as no projeto político-pedagógico da escola, com uma função clara e específica que permita um uso educativo, ético e construtivo na educação de crianças e jovens. Como o acesso a essas tecnologias ocorre por meio dos celulares, tablets e computadores, que por sua vez, são também a porta de entrada para as mídias sociais, esse uso ficou mais complexo. Essas mídias veiculam todo tipo de conteúdo (e a maior parte dele não é apropriado para o público escolar), sem falar que, por força do modelo de negócios que possuem, não estão preocupadas em educar ninguém, tão somente em capturar a atenção e manter seus consumidores naquele ambiente o máximo de tempo possível para que possam coletar seus dados e desejos à vontade.
“A educação é vítima da modernidade líquida. O pensamento está sendo influenciado pela tecnologia. Há uma crise de atenção, por exemplo. Concentrar-se e se dedicar por um longo tempo é uma questão muito importante. (…) Isso se aplica aos jovens, em grande parte. Os professores reclamam porque eles não conseguem lidar com isso. Até mesmo um artigo que você peça para a próxima aula, os alunos não conseguem ler. Buscam citações, passagens e pedaços”, afirmou Bauman, em 2015. Agora é a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) que, por meio do seu Relatório Global de Monitoramento da Educação, alerta que “o aumento do uso de celulares entre crianças e adolescentes nas escolas implica em falta de interação e alto índice de distração”, motivo pelo qual diversas instituições educacionais ao redor do mundo proibiram o uso desses aparelhos na escola. Em polvorosa, pais e educadores buscam alternativas para controlar o uso dos dispositivos, tentando “trocar o pneu do carro com ele em movimento” como diz um antigo ditado. Porém, ações repentinas e pouco refletidas, como sabemos, não costumam dar bons resultados.
O que fazer: banir da escola? Permitir? Em quais situações? Para que? Por que? Perguntas que certamente não possuem respostas exatas. Se a informação é um direito inalienável de todo ser humano, como proibir o uso de dispositivos que conectam as pessoas com o mundo? Metade da humanidade está conectada, mas a outra metade está fora desse ecossistema digital e com isso, vemos índices alarmantes de analfabetismo funcional em países como o Brasil, por exemplo. O fosso se amplia e excluir é uma decisão muito radical a se tomar, especialmente quando se sabe muito pouco sobre os resultados concretos do uso dessas mídias, como ressalva o mesmo relatório da Unesco: “existem poucas evidências robustas do valor agregado da tecnologia digital na educação. A tecnologia evolui mais rápido do que é possível avaliá-la: produtos de tecnologia educacional mudam a cada 36 meses, em média. A maioria das evidências é produzida pelos países mais ricos” ressalta, logo na primeira linha do documento. Temos, de fato, que buscar o bom senso e o equilíbrio quando se trata de temas ainda obscuros e polêmicos, especialmente quando relacionados à educação.
Se a informação é um direito inalienável de todo ser humano, como proibir o uso de dispositivos que conectam as pessoas com o mundo?
Não bastassem os gadgets, temos agora mais um desafio a nos assombrar: a Inteligência Artificial, mais especificamente a chamada Inteligência Artificial Generativa, que chegou para ficar, disponibilizando a criação de textos e imagens a partir de um banco de dados (os nossos dados, frise-se) para quem quiser usar (e assinar) a criação. Ainda sem regulação na maioria dos países do mundo (só a China criou a sua) ferramentas como o ChatGPT já são usadas por alunos e professores de diversas maneiras, e na maior parte das vezes, sem função pedagógica. Já “correndo atrás do prejuízo” novamente a Unesco se antecipou e lançou a primeira Orientação Global sobre IA Gerativa na Educação e Pesquisa na Semana de Educação Digital que aconteceu em setembro na Etiópia.
O documento se organiza a partir da indicação de sete passos recomendados para os governos regulamentarem a IA de forma ampla e específica no setor educacional, prevendo seu uso ético em instituições de ensino e a adoção de padrões de proteção de dados e privacidade. A instituição elenca uma série de preocupações com uso da IA na educação, assim como listou quando se manifestou sobre o uso do celular nas escolas. A principal delas é a falta de formação e preparo dos educadores para o uso desses dispositivos. Em uma pesquisa global com mais de 450 escolas e universidades capitaneada por eles revelou que menos de 10% delas tinham políticas institucionais ou orientação formal sobre o uso de aplicações de IA generativa. Segundo sua avaliação, tal fato se deve à ausência de regulamentações nacionais, ao mesmo tempo em que o uso da IA generativa foi implementado muito rapidamente, sem o devido debate público, verificações ou regulamentações. Os educadores, de fato, não têm obrigação de saber aplicar essas ferramentas em suas aulas dado que são recentes e pouco estudadas, mas com certeza precisam de orientação para que isso ocorra de maneira segura e eficiente. Por outro lado, como aponta o relatório, sem regulação formal por parte dos países, não conseguirão avançar muito, uma vez que, como já dissemos, o seu modelo de negócios é o que define o uso de todas elas.
Não é a primeira vez que a educação se depara com as questões sobre o uso das mídias em sala de aula. Freinet, o educador francês que levou os jornais para a escola nos anos vinte, já falava sobre esses desafios. Como ele e Bauman afiançaram, não podemos nos livrar da realidade e das batalhas que a vida nos apresenta. Foi assim com o rádio, a TV e agora com as mídias digitais. Sabemos que é possível utilizá-las como um canal precioso de comunicação e expressão, que elas, janelas do mundo, podem tornar-se portas de entrada para a construção de uma cidadania digital ética e inclusiva, centrada no ser humano. Esse, aliás, é o ponto de atenção.
O foco do uso dessas tecnologias deve ser o bem-estar integral das pessoas, o projeto deve prever a resolução dos problemas que se apresentam em nosso cotidiano, tornando a vida em sociedade sustentável e saudável. Penso que ele só será possível se levar em conta as nossas experiências (nesse caso, especialmente as das crianças e jovens) porque são elas que conferem sentido às narrativas – para usar a palavra do momento – que pautam nossos pensamentos e ações, tanto as que absorvemos por meio das mídias digitais, como aquelas que construímos e compartilhamos. E quanto mais conhecimentos construirmos, mais condições teremos de distinguir a matéria da qual essas narrativas são elaboradas. Diversificar as vivências das crianças e jovens possibilitará que eles saboreiem situações diversas, que são o que verdadeiramente nos ensinam como lidar com a epopeia da vida. E aí, talvez, donos da sua história, as crianças e jovens sejam capazes de focar seu tempo e atenção para além das telas. Acho que esse é um caminho que vale a pena experimentar.
Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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