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Poucos termos são mais polissêmicos e amplos do que “identidade”. Em nada menos do que 37 linhas, o dicionário Houaiss apresenta acepções tão amplas e diversas como “estado do que não muda, do que fica sempre igual”, ou “consciência da persistência da própria personalidade” ou ainda “conjunto de características ou circunstâncias que distinguem uma pessoa ou uma coisa (…)”. Pinçar desses sentidos os significados mais relacionados às relações humanas também não reduz sua polissemia sensivelmente. Grande parte do que fazemos em nossas vidas – da ocupação que desempenhamos ao tipo de hábitos que nutrimos, das nossas opiniões políticas à nossa aparência – ajuda a formar quem somos, nossa identidade portanto. Em suma, “identidade” é um conceito tão amplo que, no limite, pode abarcar toda a nossa existência, nossa personalidade, afinidades coletivas, imagem pública, etc.
Apesar de mais recente, a declinação “identitário(a)” sofre de confusões semânticas equivalentes. Se hoje o termo é empregado no discurso público para designar as pautas de grupos oprimidos ou minorizados, sua origem política é oposta. Seu emprego original mais notável data da década de 1990, quando emergiu na França o “ mouvance identitaire” , uma articulação política ultraconservadora que buscava “resgatar” o patriotismo branco contra as imigrações e influências externas, que estariam destruindo a “civilização europeia”.
No Brasil, “identidade” também foi um termo utilizado historicamente por um discurso nacionalista oficial que pretendia realçar a unidade ou “identidade nacional”. Supostamente calcada na mestiçagem, na hospitalidade e na alegria, nossa identidade nacional era propalada interna e externamente como bastião da harmonia, a despeito das abissais desigualdades aqui imperantes. No campo da esquerda, também eram comuns os debates sobre a importância da “identidade de classe”, ou seja, que trabalhadores fossem capazes de reconhecer suas opressões para torná-las base de uma militância comum.
Logo, “identidade” era até bem pouco tempo um conceito aplicado a grupos nacionalistas ou centrados nas lutas de classe, algo oposto ao que acontece atualmente. Sob esse rótulo, hoje são abrigados coletivos tão distintos quanto o movimento negro, a militância feminista, o movimento LGBTQIA+, indígena, os movimentos pelas pessoas com deficiência, etc. Paradoxalmente, todos esses grupos teriam em comum sua crítica às identidades nacionais unificadas e às clivagens de classe como fundamento das lutas políticas.
Contudo, reduzir as lutas dos grupos oprimidos à sua dimensão “identitária” não é apenas um equívoco, mas um perigo. Primeiro, porque o uso do termo inverte meios e fins. O investimento na produção de identidades coletivas é um meio incontornável para qualquer movimento político, mas nem sempre é o fim que justifica a sua existência. Segundo, o conceito nos impede de perceber a dimensão material das bandeiras que de fato são levantadas por esses movimentos. Em resumo, os alcunhados “movimentos identitários” de hoje são na verdade coletivos políticos que almejam direitos fundamentais à vida, à dignidade, à igualdade de oportunidades, etc.
Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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