Coluna

Luciana Brito

Novembro negro, povo exausto e a história que volta à tona

14 de novembro de 2023

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Muitas são as medidas por meio das quais o Banco do Brasil pode, de forma comprometida e séria, reparar o povo negro brasileiro

Decidi o tema desta coluna só na manhã de segunda-feira (13), depois de levar meu filho para a escola. Mais uma vez, quando apontei na rua, aquele senhor negro e alto, que deve ter cerca de 60 anos, fez um aceno e gritou um sonoro bom dia. É sempre assim: ele já nos conhece, embora sejamos novos na vizinhança. Trata-se de um morador de rua, que fala alto, cumprimenta a todas as moradoras e moradores e canta bem cedinho. À tarde, costuma descansar na calçada, quando não se abriga na garagem de um dos prédios. Na maioria das vezes, ele anda para lá e para cá, cantando ou conversando com trabalhadores de outros prédios, sempre se referindo a eles pelo nome. Eles também o conhecem. E foi só na segunda-feira (13) que eu fui saber da sua história, contada por um trabalhador que o conhece. Seu Antônio (nome fictício) foi zelador de um dos prédios da rua, provavelmente aquele mesmo onde ele se abriga. Desde quando entrou em processo de adoecimento psíquico, vive na rua onde trabalhou por décadas e fez dela sua morada. Recusa-se a ir para casa, embora a família insista. É ali que resiste a última memória à qual se prende: dos seus dias como trabalhador num bairro de classe média de uma cidade onde pessoas negras como ele vivem e, em sua maioria, padecem.

A história de Seu Antônio, do seu apego à memória dos dias como trabalhador ativo (de dignidade, talvez), mistura-se com outros significados. De um lado, o descarte da sua mão de obra, comprometida pela loucura, e a sua consequente ida para as ruas. De outro, a gangorra da memória, que ora esquece o passado, ora se apega a ele, ou ainda que também o reconta, omitindo ou mudando o que for conveniente. Seu Antônio usa a sua memória para encontrar sentido nas lembranças na rua onde trabalhou. Elites financeiras, de descendentes de fidalgos, remetem a seu passado para resgatar uma origem especial, nobre. Instituições centenárias recorrem ao passado para reafirmar sua legitimidade e assim elegem qual parte da história será contada e passada adiante.

Recentemente, um grupo de colegas historiadoras e historiadores pediu a procuradores federais do Rio de Janeiro que entrassem na Justiça contra uma das maiores instituições financeiras do país: o Banco do Brasil. O resultado de uma pesquisa em fontes documentais levou a conclusões sobre o envolvimento da instituição com a escravidão e o tráfico transatlântico – inclusive após 1831, quando ele se tornou ilegal. Fundado em 1808 e depois recriado em 1853, o Banco do Brasil tinha como um dos seus maiores acionistas José Bernardino de Sá, traficante de escravos, que contava com mais de 5.000 ações na instituição. Além dele, outros fazendeiros, donos de pessoas escravizadas, recebiam apoio financeiro do banco, que também levou a leilão pessoas que pertenciam a seus clientes endividados. Assim, a pesquisa histórica indicou aquilo que ao menos nós historiadoras e historiadores já sabíamos: pessoas negras eram moeda, o dinheiro de sociedades escravistas como a brasileira. Além de serem a própria moeda corrente, pessoas negras escravizadas multiplicavam o dinheiro por meio do seu trabalho e serviam de garantia na praça comercial para qualquer tipo de transação financeira.

O intuito dos pesquisadores é exigir políticas reparatórias, não meros pedidos de desculpas que em nada revertem efeitos de séculos de acúmulo de capital por meio de extração de mão de obra humana e violência, infligidas inclusive contra mulheres e crianças. O Ministério Público Federal aquiesceu, e ajuizou um pedido para instaurar um inquérito civil contra o Banco do Brasil. Os procuradores também exigiram o posicionamento da instituição e a presença de seus representantes numa reunião no dia 27 de outubro, da qual participaram pesquisadoras, pesquisadores e membros da procuradoria da República.

De imediato, o banco emitiu uma nota tímida . Elencou suas ações de promoção da igualdade racial e afirmou que a instituição estava aberta para o diálogo com a sociedade civil sobre reparações. No dia da reunião, o banco foi mais resistente. Seus representantes tentaram minimizar o impacto do sistema escravista sobre as populações negras que viviam no Brasil e o enriquecimento de indivíduos e instituições ao longo de séculos de exploração de mão de obra e de uso dessas pessoas como moeda. Alegaram que a escravidão não era ilegal no século 19 – mais que isso, que era uma forma de exploração culturalmente aceitável à época. Por fim, afirmaram que não existem registros dos vínculos do banco com a escravidão nos arquivos da instituição.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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