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Januária Cristina Alves

A importância da educação midiática como política pública

05 de janeiro de 2023

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Trata-se de um projeto público e nada individualista. Tem a ver com a sobrevivência de todos nós, da democracia e dos princípios que moldam a nossa convivência aqui neste planeta

Uma das primeiras falas do recém-empossado presidente Lula foi que o combate às notícias falsas consiste em “um desafio civilizatório”, colocado por ele em pé de igualdade e relevância com as guerras, a crise climática, a fome e a desigualdade econômica e social. “Defendemos a plena liberdade de expressão, cientes de que é urgente criarmos instâncias democráticas de acesso à informação confiável e de responsabilização dos meios pelos quais o veneno do ódio e da mentira são inoculados”, disse o novo chefe da nação, em seu discurso no Congresso Nacional. E o reconhecimento dessa importância traduziu-se logo nos primeiros atos de seu governo, com a criação da Secretaria de Políticas Digitais, encarregada de políticas para o enfrentamento à desinformação e ao discurso de ódio na internet, em articulação com o Ministério da Justiça. A Secretaria, que é subordinada à Secom – Secretaria Especial de Comunicação Social – proporá, entre outras ações, políticas relacionadas aos serviços digitais de informação e medidas de proteção a vítimas de violações de direitos no ambiente online. Um avanço comemorado por todos nós, que defendemos o combate às notícias falsas como política pública, já que esse tema interessa e afeta a todos os setores da sociedade.

A comemoração veio dobrada, pois além da criação da Secretaria, o governo destacou a importância da educação midiática para o combate à desinformação com a instituição, também logo no primeiro dia de governo, do departamento voltado aos Direitos na Rede e à Educação Midiática, por meio do Decreto 11.362. A atuação do novo órgão está discriminada no artigo 25 do Anexo I, que trata da Estrutura Regimental da Secretaria de Comunicação Social, e prevê parcerias com os Ministérios da Justiça e Segurança Pública; Direitos Humanos e da Cidadania; de Mulheres; Igualdade Racial e da Educação, objetivando o alcance de metas tais como a formulação de políticas para a promoção do pluralismo da mídia e para o desenvolvimento do jornalismo profissional. Esse decreto legitima e impulsiona as muitas ações voltadas à educação midiática e informacional que temos visto se expandir no país, especialmente depois das eleições de 2018. A urgência com que o governo cuidou dessa questão nos anima e reafirma a urgência da criação de políticas públicas para o enfrentamento das mazelas causadas pela desordem informacional.

Vale destacar que a atuação desse recém-criado departamento prevê uma articulação com diversos ministérios e entre as suas funções está prevista a de “auxiliar na proposição e na implementação de políticas públicas para promoção do bem-estar e dos direitos da criança e do adolescente no ambiente digital em articulação com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania” bem como “auxiliar na formulação, articulação e implementação de políticas públicas de educação midiática, em articulação com o Ministério da Educação”. Ou seja, referendou-se a necessidade de se trabalhar a educação midiática para além da sala de aula, entendendo-a como um tema transversal, que perpassa todas as áreas de conhecimento e solicita uma atuação cidadã concreta e mensurável.

O governo implementou um “pacote completo” para, na prática, empreender ações factíveis visando a formação de um público leitor qualificado, capaz de diferenciar informação de ficção, princípio fundamental para o combate às fake news

Nessa nova gestão é alvissareiro observar que as políticas públicas de enfrentamento à desinformação somam-se à preocupação com a formação de leitores competentes e críticos, pois também, nas suas primeiras horas, instituiu-se a Secretaria de Formação, Livro e Leitura, ligada ao Ministério da Cultura. A Secretaria terá, além desta diretoria, a de Educação e Formação Artística. Entre as competências deste órgão estão atuar na democratização do acesso ao livro, à leitura e à literatura, com ações, projetos e programas conforme o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) e também “potencializar a arte literária de todas as regiões do país”. Ou seja, o governo implementou um “pacote completo” para, na prática, empreender ações factíveis visando a formação de um público leitor qualificado, capaz de diferenciar informação de ficção, princípio fundamental para o combate às fake news.

Em seu “Manifesto pela Educação Midiática” (já em pré-venda no site da Edições SESC São Paulo) -, livro que tive o prazer de recomendar a tradução para o português e escrever o Prefácio – , o professor emérito da Loughborough University e professor visitante no King’s College London, David Buckingham, afirma o quão fundamental é que a Educação Midiática seja instituída como política pública. Segundo ele: “A educação por si mesma não proporcionará uma solução suficiente para os problemas que enfrentamos. Nós, educadores, precisamos trabalhar com outros órgãos públicos e não governamentais, visando promover mudanças e reformas mais amplas”. Ele, que é uma das maiores autoridades mundiais nesse assunto, afiança que a internet deve ser entendida como “um bem público básico, como a água e o ar”, e que é imprescindível que a Educação para as Mídias seja também uma ferramenta capaz de promover ações transformadoras para toda a sociedade. “A educação midiática almeja um uso crítico e consciente dos meios de comunicação, e deve nos permitir não somente entender como a mídia funciona, ou lidar com um mundo intensamente mediado, mas também imaginar como as coisas podem ser diferentes. A educação midiática busca promover o entendimento crítico; mas o entendimento crítico também deve levar à ação”, ele frisa. Em seu Manifesto o especialista faz questão de afirmar que só a educação midiática não basta para combater esse “desafio civilizatório”, como disse o presidente Lula, é preciso que ela esteja articulada a um conjunto de outras propostas.

Sabemos que decretos, leis e que tais, por si só, não mudam o mundo. Mas são um excelente começo de conversa e um poderoso convite à ação. Cabe a cada um de nós, cada qual em seu lugar, atuar na proposição de projetos e propostas exequíveis que possam auxiliar na desconstrução da desinformação e mais especificamente na formação de leitores críticos e competentes. A questão é complexa e multifacetada, mas se entendida como de todos nós, tem mais chances de prosperar. Trata-se de um projeto público e nada individualista. Tem a ver com a sobrevivência de todos nós, da democracia e dos princípios que moldam a nossa convivência aqui neste planeta. Nesse mundo líquido, tais valores são sólidos e cabe a nós trabalhar objetiva e urgentemente para não deixarmos o que nos humaniza, derreter.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

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