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Universidades são instituições que possuem a transformadora capacidade de formar profissionais altamente diferenciados, com melhores oportunidades pessoais e também maior potencial de participação civil, catalisando avanços da sociedade. E vão muito além disso: são centros que abrigam pensamento criativo e debate aberto, que atraem talentos e criam conexões entre pessoas, que ousam buscar conhecimento de fronteira e que, portanto, agem como incubadoras de benefícios e mudanças societais decorrentes. É amplamente reconhecido que, por serem celeiros para a busca e discussão de novas fronteiras na ciência e cultura, as universidades que abrigam docentes-pensadores também promovem melhor ensino e formação, preparando seus estudantes para aprender a buscar conhecimento, e não limitando-os ao status quo no momento de sua formação. Ou pelo menos é assim que uma universidade humboldtiana ideal deveria funcionar.
Obviamente não vivemos utopias, e as universidades não fogem à regra. Muito se fala da deturpação do conceito holístico de formação de pensadores na educação superior em resposta às demandas de mercado e suas necessidades profissionais específicas. Tenho minhas dúvidas se essa é a maior ameaça aos papéis essenciais de instituições de ensino superior, até porque, para mim, as maiores transformações da sociedade são ancoradas nas universidades e celeiros de novos pensamentos. Acredito que a maior ameaça ao potencial transformador societal das universidades vem de dentro delas mesmas, de sua tendência crescente de diminuir a importância do livre pensamento, da discussão aberta e da busca por fronteiras do conhecimento através da ciência.
Quando iniciei minha carreira docente na USP há mais de duas décadas, me maravilhei com o ambiente em que colegas docentes e administrativos verdadeiramente valorizavam e apoiavam a realização de boa ciência. Mas pouco a pouco isso foi se transformando com a transferência de tarefas de administradores para docentes e a criação de mais e mais passos burocráticos, certificativos e sistemas eletrônicos convolutos para cada atividade que precisamos completar. Cada uma dessas adições administrativas foi implementada sob a bandeira de ser simples, rápida (só demora 5 minutos!) e prevenir algum mau uso do precioso investimento público nas nossas universidades. Comete-se assim um erro de gestão muito comum: ao tentar prevenir os erros graves de alguns, em vez de punir os poucos errados exemplarmente, atrapalha-se a vida de todos. Criam-se amarras administrativas supostamente preventivas, que na prática nunca coíbem os mal intencionados, mas certamente pioram muito a vida da maioria honesta.
O resultado somatório de anos de incrementos burocráticos é um estonteante absurdo. Um professor em uma universidade federal contou recentemente que precisa de 43 documentos distintos adentrados em pastas específicas de um sistema eletrônico pouco amigável para solicitar um afastamento a fim de participar de um congresso ou atividades de pesquisa no exterior por meros 15 dias. Esse problema não é somente brasileiro , mas no Brasil há o problema adicional de que não há, ou há pouco, apoio administrativo especializado. Lembro sempre quando, ao enviar uma amostra para um grupo colaborador no exterior, a secretária deles me pedia repetidamente para falar com o nosso “oficial de transferência de materiais”, cargo que precisava explicar que simplesmente não existia aqui e cujas atividades, portanto, cabiam a mim, pesquisadora (ela achava isso tão absurdo que não acreditava ser verdade). Esse acúmulo de atividades clericais vai além do péssimo efeito de nos desviar de nossas atividades científicas por pura falta de tempo. Também promove uma tentativa de padronizar e normatizar a atividade de geração de conhecimento, justamente uma área que necessita de ideias e atividades fora (e para muito além) da caixinha.
Burocratizar e normatizar excessivamente não somente é danoso por distrair e podar as asas da imaginação de cientistas. Pode também gerar barreiras ilusórias, ao criar certificações que dão a impressão de progressos, mas que na prática não passam de medidas “pra inglês ver”. No meu instituto estão sendo priorizadas obras de grande visibilidade (e grande custo), sob a desculpa de serem necessárias para certificações oficiais de segurança. Um exemplo é a construção de enormes barreiras de cimento em lugar de janelas e acessos a áreas verdes, supostamente para conter o espalhamento de grandes incêndios. Isso está sendo priorizado num prédio com graves flutuações elétricas (a ponto de haver queima constante de equipamentos), infiltrações nos telhados mal impermeabilizados, infestações de insetos e roedores, vazamentos e buracos nos tetos, paredes e pisos dos laboratórios. Estes últimos são problemas que diretamente e gravemente afetam não somente nossa segurança, mas também a integridade de investimentos públicos e, principalmente, nossa capacidade de fazer pesquisa. Mas não adianta pleitear priorização do que são claramente intervenções mais importantes de infraestrutura: aqueles que chamam a atenção para que se cuide de problemas reais institucionais são mal falados, como se fossem contrários à segurança, pois cuidados reais são menos prioritários que se obter certificação oficial, por mais maquiada que ela seja.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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