Temas
Compartilhe
Quem olha o mar do Rio Vermelho no dia 2 de fevereiro, em Salvador, verdadeiramente acredita que, em tese, vivemos num país onde a religião de matriz africana é realmente tratada como sagrada, definidora de uma nação. É um momento raríssimo no qual pessoas de diversas cores e classes sociais disputam um cantinho na beira da praia para rezar (e, às vezes, tirar uma selfie) agradecendo ou pedindo à rainha do mar, Iemanjá, senhora das cabeças, mãe generosa, senhora dos oceanos.
A festa segue, sagrada e profana ao mesmo tempo. Como quem “espia” tentando entender, lanço meu olhar cético. Ainda que cheia de fé, decido ir embora. Em silêncio, digo à Dona da Festa: “outro dia volto para conversarmos melhor, quando a casa estiver mais vazia, sem tantas visitas”. A razão do meu desânimo são os números crescentes das denúncias de intolerância religiosa: um salto de 60% entre 2022 e 2023. Movimentos sociais e lideranças ligadas a religiões de matriz africana, como o candomblé, atentam para uma modalidade específica de violência, que é o racismo religioso. Ele demonstra mais uma faceta e velho racismo, que demoniza determinadas formas de fé unicamente por fundamentarem-se nos valores africanos e afro-brasileiros, e perseguem pessoas que cultuam deusas e deuses negros.
Enquanto testemunho o mar de flores jogadas nas águas, as preces fervorosas das pessoas mais diversas, também posso ver uma população negra de Salvador insistindo no óbvio: a negritude de Iemanjá, deusa africana. A luta contra o racismo, assim como esse próprio mal, não descansa nem durante a festa.
E esse mal, o racismo, ganharia os jornais de Salvador já no dia seguinte, evidenciando a realidade que estava por vir, sem descanso, mantido o cotidiano, desafiando o Carnaval. Já no dia 3 de fevereiro, num grande evento pré-carnavalesco, teríamos a primeira agressora racista presa. O caso nos chama atenção pela peculiaridade. A vítima seria uma policial militar, mulher negra, fardada, em serviço.
Ao passar por um portal de acesso à festa, a tal mulher, uma suposta senhora idosa e frágil de 70 anos, recusou-se a ser submetida a uma revista à qual são submetidas TODAS as pessoas adultas antes de entrarem nos eventos públicos de Salvador. Ao ser abordada por uma policial negra, a mulher teria dito que “não veio do navio negreiro para ser revistada por uma negra”. De acordo com relatos da imprensa baiana, naquele momento, a lógica da interação policia/civil se inverteu totalmente. Ao contrário do que sabemos que acontece na maioria dos casos, enquanto a policial/vítima chorava, a agressora racista continuava a debochar da situação, seguindo com as ofensas racistas. Sim, a agressora está viva e solta após audiência de custódia, nada parecido com o que acontece com pessoas negras sob a guarda dessa mesma polícia militar baiana.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
Navegue por temas