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Umas das propagandas visuais do governo Geisel de 1976, vinculada amplamente na TV, tinha como tema Pindorama. A peça trazia o discurso oficial da ditadura militar sobre a questão racial no Brasil: começava com uma imagem de uma mulher indígena e de uma criança; ambas olhavam pacificamente para o mar, do qual surgiam três caravelas. Depois apareciam aves, plantas exuberantes e pessoas negras dançando (acho que maracatu). A música era embalada por versos que diziam que essas pessoas tão diversas estavam “unidas pela mesma língua… por um destino comum”. Uso muito esse vídeo nas minhas aulas dada a precisão de representar um discurso oficial de um país sobre a questão racial. O que mais me chama atenção dessa música — que acompanha perfeitamente a mensagem do vídeo — é a omissão da palavra negro, e isso não é um descuido ou algo inocente, como nada era na ditadura: “índio, mulato e branco, de todas as cores, são todos por um”. Mais adiante, outro verso afirma: “esse é o país que vai pra frente”.
Porém, diante do que sabemos sobre a ditadura militar e dos seus impactos permanentes na sociedade brasileira, olhando para o passado, podemos nos perguntar: fomos para a frente mesmo? E, afinal, para onde fomos e como viemos parar aqui?
Toda narrativa histórica que nega, apaga ou omite conflitos é problemática e negativamente comprometida. A palavra “mulato”, tal qual se apresenta no verso da canção que acompanha o vídeo, carrega a ideia segundo a qual negro é negação, e apenas o negro comprometido com a narrativa de harmonia e progresso, desde que negue sua negritute, é bem-vindo. Deixará até de ser negro, desde que se comporte. Ganhará um passaporte para o mundo branco, será menos negro, será mulato. Não há lugar para negros nesse Brasil harmonioso, e o lugar dos povos indígenas, aqui chamado de “índios”, é na mata, tutelados pelas classes político-militares que dirigiam a nação.
Sabemos que esse vídeo, que pode trazer até sentimentos saudosistas para muitas pessoas, é mais uma peça publicitária dentre diversas que propagavam a ideia de harmonia e desenvolvimento deste país governado por 21 anos pelo autoritarismo e pela violência contra pessoas e grupos considerados subversivos. A militância em prol da democracia, da igualdade de gênero, da diversidade sexual, além dos movimentos engajados na luta antirracista, podem nos dizer muito bem o quanto os militares e as elites brasileiras perseguiram, criminalizaram, violaram direitos e até mesmo torturaram e mataram pessoas que expunham a falácia de que o regime ditatorial estava comprometido com o bem coletivo e a democracia.
Como afirmou minha colega Ynaê Lopes, a defesa da ideia de democracia racial mascarava o racismo da sociedade brasileira já naquela época. A noção da igualdade entre pessoas tão diversas era pilar fundamental desse discurso oficial de harmonia entre as raças, já que a desigualdade e a violência racial sempre foram instrumento maior da manutenção dos privilégios no Brasil. Sob o discurso da democracia racial, que não é somente coisa de gente conservadora, infelizmente, as hierarquias raciais eram tratadas como um fato natural, um fardo para alguns — algo que incrivelmente não era considerado racismo. A desigualdade — numa sociedade em que uns eram mais cidadãos e outros, menos — era a ordem nacional e natural das coisas, e pessoas negras conformadas com “seu devido lugar” poderiam até mesmo viver felizes por aqui dessa forma.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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