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Luiz Augusto Campos

A principal lição de um desastre está na própria política

14 de maio de 2024

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As lições de um cataclisma como este não virão dele próprio, muito menos dos consensos científicos em torno de suas causas, mas das respostas políticas que serão organizadas a partir deles

“(…) Já que o nosso livre-arbítrio não desapareceu, julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro de metade de nossas ações, mas que também deixe ao nosso governo a outra metade, ou quase. Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam as planícies, arrasam as árvores e as casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, mas cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim, nada impede que, voltando a calma, os homens tomem providências, construam barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se tome menos livre e danosa.”

Escrita há mais de quinhentos anos por Nicolau Maquiavel em “O Príncipe” a citação acima faz uma analogia entre a incerteza própria da política e o destino dos rios que alagam sem aviso. Apesar de antiga, a metáfora maquiaveliana é tão atual que se torna cada vez mais literal, como demonstra a tragédia climática e humanitária vivida por 90% dos municípios do Rio Grande do Sul. Mas não deixa de ser irônico que justamente no momento histórico em que a humanidade alcança os meios científicos mais sofisticados para domesticar o meio ambiente, este demonstre sua superioridade com desastres climáticos ainda mais destrutivos.

Essa ironia reflete vários dilemas persistentes da reflexão e da prática política moderna. Um desses dilemas reside no fato de que o avanço dos meios de comunicação, que hoje assumem uma escala global e uma temporalidade instantânea, não realizou a utopia iluminista de uma civilização ilustrada, ao contrário. Hoje, grupos conservadores e reacionários contam com verdadeiras indústrias para a produção de pânicos morais e fake news. Numa delas, o presidente da República é culpado pelo desastre com base num vídeo em que ele supostamente ameaça se vingar dos estados que não o elegeram, dentre os quais, o Rio Grande do Sul. No trecho original, Lula de fato diz que pretende se “vingar dessa gente”, mas estava na verdade fazendo referência ao  grupo de juízes e procuradores que o perseguiram e condenaram injustamente. Noutra, uma mulher combinou de modo exemplar racismo ambiental com racismo religioso ao explicar a tragédia pela “ira de Deus” contra o estado que, apesar de ser um dos mais brancos e cristãos do Brasil, possui também um expressivo número de terreiros das religiões afrobrasileiras.

A proliferação de narrativas estapafúrdias como essas é apenas um sinal de que esse cataclisma pode radicalizar ainda mais à direita parte da opinião pública gaúcha e brasileira. Dez anos depois da passagem do furacão Katrina, que destruiu mais de 200 mil casas na cidade de Nova Orleans, o cientista político Stephen Flynn lamentava que “o que aconteceu com Nova Orleans deveria servir como um lembrete contundente das consequências custosas da arrogância, negação e negligência. Infelizmente, porém, essa atitude continua a caracterizar o relacionamento dos americanos com seus ambientes construídos e naturais”. Assim como a pandemia da Covid-19, todos esses desastres devem ser analisados sem a expectativa inocente de que eles  sejam per se capazes de produzir lições políticas positivas. 

Em uma de suas últimas colunas, Celso Rocha Barros ressalta que “desastres como as enchentes do Rio Grande do Sul têm potencial para furar a bolha do negacionismo”, mas reconhece que o negacionismo tem o apelo de simplificar a realidade a ponto de torná-la mais palatável. Isso porém não é propriedade exclusiva da extrema direita. Uma das dimensões inextricáveis da política é a persuasão e o convencimento, artes que demandam simplificações capazes de mobilizar grandes coletivos. Poucas coisas podem ser mais complicadas do que a obra de Karl Marx, mas isso não impediu que o marxismo fosse (e em alguma medida, continue sendo) por muito tempo a base teórica de ideologias socialistas propaladas por intelectuais a operários.

Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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