Coluna

Luiz Augusto Campos

A crise de legitimidade da universidade brasileira

10 de junho de 2024

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É justamente no momento em que a universidade pública brasileira mais se adequa às suas missões constitucionais que sua importância é colocada em xeque

Há quase dois meses, as universidades e institutos federais de ensino superior estão em greve. Uma paralisação que começou de modo fragmentado, hoje já conta com a aderência da maior parte dessas instituições. Para além do bater de cabeças entre as diferentes representações da classe, as reivindicações são várias, indo da recomposição salarial até a demanda por melhores condições de trabalho e mais investimentos no ensino superior público.

A restrição do noticiário às negociações salariais não pode nos fazer ignorar a aguda crise em que se encontra o sistema brasileiro de ensino superior e, especialmente, as universidades públicas. Embora o sistema em geral venha se expandindo, a fatia estatal vem diminuindo proporcionalmente. Responsável por mais da metade dos diplomados no início dos anos 1990, o ensino superior público respondeu em 2022 por apenas 19% dos formados, contra incríveis 81% do setor privado. Esse cenário é o inverso do que se passa nos países ricos, nos quais menos de 30% dos universitários estão em instituições particulares.

A opção por um sistema superior privado não é em si um problema, mas o modo como ela vem se realizando no Brasil, sim. Mesmo em países como os EUA, as instituições particulares costumam ser autogeridas e sem fins lucrativos. Nenhuma universidade da invejada Ivy League (Harvard, Columbia, Yale etc.) tem donos ou acionistas decidindo seus rumos. No Brasil, passa-se o oposto: embora a maior parte das faculdades privadas não vise o lucro formalmente, na prática quase todas são controladas por famílias que extraem delas suas fortunas. Soma-se a isso a baixíssima regulação do sistema, que abre uma enorme margem para a rápida titulação de estudantes sem qualquer mecanismo de controle ou acompanhamento de sua qualidade.

Logo, a mercantilização da educação superior no Brasil se transformou num problema crônico, mesmo de uma perspectiva capitalista. Estudantes têm o interesse natural de obter títulos de modo rápido com o menor esforço, ao mesmo tempo que o mercado demanda profissionais cada vez mais bem formados, versáteis e produtivos. A conciliação desses interesses contraditórios costuma ficar a cargo do Estado e suas regulações, ou de agências formadas pelo próprio sistema, elementos ainda muito frágeis no Brasil. Logo, a maior vítima do processo de mercantilização da educação é o próprio mercado. Com a expansão desenfreada de graduações rápidas e desreguladas, nossa população diplomada cresce em quantidade, mas não em qualidade. Isso afeta diretamente aquilo que os economistas costumam identificar como nosso maior calcanhar de Aquiles: a baixa produtividade do trabalho. Não cabe aqui discutir os limites desse conceito, mas apenas prestar atenção no fato de que não existe possibilidade de o país ser desenvolver sem reformas e investimentos pesados nas universidades, especialmente nas públicas.

É verdade que os governos Lula-Dilma fizeram investimentos importantes nessa seara. O Reuni (Plano Nacional de Reestruturação do Ensino Superior) e a criação de múltiplos Institutos Técnicos Federais dobraram o tamanho do sistema, ainda que as matrículas nas faculdades privadas também tenham crescido em ritmo acelerado. O sistema nacional de pós-graduação também mais do que duplicou, saindo de cerca de 2.000 programas em 2005 para quase 5.000 em 2020. Mas, desde então, o setor está estagnado, e nada indica que o governo pretenda reformá-lo profundamente. Uma exceção foi o anúncio de 100 novos Institutos Federais, proposta discutível dado o nível de precariedade no funcionamento dos Institutos Federais em operação, e o anúncio de investimentos de emergência nas universidades alcunhados de PAC das federais.

Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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