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No início de agosto, o Conselho Federal de Medicina realizou suas eleições para conselheiros, realizadas a nível estadual. O processo não costuma interessar muita gente fora da esfera médica; dessa vez, porém, a eleição mobilizou uma atenção incomum da mídia. Por conta de polêmicas recentes sobre a atuação do órgão na pandemia de covid-19 e nas restrições a métodos de aborto legal, em que o CFM foi visto como um braço médico do bolsonarismo, editoriais em veículos importantes como os jornais Folha de S.Paulo e O Globo, às vésperas da eleição, manifestaram a importância de um órgão regulatório livre de aparelhamento ideológico e comprometido com as evidências científicas.
O discurso soa bonito, mas faltou combinar com os russos – no caso, os mais de 400 mil médicos que votaram em número recorde na eleição, cujo resultado foi basicamente um tsunami bolsonarista. As chapas “conservadoras”, “de direita”, ou seja lá qual for a denominação para isso, venceram na maior parte dos estados. Em alguns deles, como São Paulo e Rio de Janeiro, pesou a fragmentação da oposição: com o resto do eleitorado dividido, o bloco bolsonarista votou unido e levou a melhor. Em diversos outros, nem a soma das outras chapas seria suficiente para mudar o resultado.
O eleito mais notório foi o infectologista Francisco Cardoso, que assumirá como conselheiro do estado de São Paulo após receber 38% dos votos em uma eleição apertada. Tendo ganhado notoriedade durante a pandemia, em que chegou a figurar na CPI como convidado da base governista, Cardoso tornou-se uma figura popular das redes sociais (com quase 400 mil seguidores no Instagram) representando um personagem desbocado, preconceituoso, negativista e furioso que agride pessoas aleatórias em ritmo frenético, além de fazer ativismo contra vacinas para covid-19, ter sido acusado pela mídia de fornecer atestados para a isenção vacinal e ter sido condenado a 3 meses de prisão pela justiça paulista por injúrias contra outro candidato em uma eleição anterior para a Associação Médica Brasileira (AMB). A despeito das controvérsias – ou talvez por causa delas – ele recebeu o apoio de personagens como a deputada Bia Kicis e o empresário Luciano Hang – e surfou a onda de ser “a única chapa de direita” na eleição.
A mídia repercutiu particularmente o fato de Cardoso ter defendido tratamentos controversos contra a covid-19, como a hidroxicloroquina, mas eu argumentaria que “negacionismo” (seja lá o que isso quer dizer) é o menor dos seus problemas – pelo contrário, ele parece inteligente e cientificamente embasado para defender suas posições, por mais controversas que sejam. Para mim, a impressão que ele passa nas redes sociais, em que chama pessoas aleatórias de doente mental, filho da puta viado escroto, verme safado e imundo, psicopata demente, palhaço, picareta e farsante – e isso sendo a amostragem de um único dia de tuítes mal humorados em 2021 –, é simplesmente a de ser uma pessoa ruim, pelos padrões de civilidade normalmente aceitos pela sociedade.
O fato de a imprensa só lembrar que ele é cloroquiner, assim, parece um lembrete algo cômico do quão histérica virou a demonização do antimalárico no país. Ou uma consequência de que o perfil de Cardoso no X tenha sumido pouco depois da eleição, algumas semanas antes de um juiz fora de controle apagar todos os outros – talvez num esforço do infectologista para fazer colar a narrativa de que seus desafetos nas redes são culpa da mídia. A internet, porém, é prolífica em arquivar milhares de postagens com o que ele disse no verão passado (e nos anteriores também) para desdizê-lo.
Eu não conheço Cardoso pessoalmente, e não gostaria de julgar ninguém pelo personagem que representa nas redes sociais. Dando o benefício da dúvida, ele pode simplesmente estar tentando parecer uma pessoa ruim para chamar a atenção. Uma estratégia que claramente funcionou para um certo deputado obscuro ascender à presidência na década passada, e que vem sendo repetida pelo atual candidato à prefeitura de São Paulo, que admitiu candidamente que “no processo eleitoral você tem que ser um idiota” – e que, talvez não por acaso, acaba de convidar Cardoso para elaborar seu plano de saúde para a cidade. Pode-se argumentar que comportar-se como uma pessoa ruim para chamar a atenção já torna você uma, mas deixo esse juízo para o leitor.
A reação de parte da classe médica ao resultado da eleição nas redes sociais em que transito foi de choque. Talvez porque, no mundo com o qual essas pessoas estavam acostumadas, um comportamento como o do infectologista normalmente renderia a um médico uma punição pelo órgão regulatório da classe. No Brasil de 2024, porém, ele parece ser uma credencial para que você vá trabalhar nele.
Lamentos à parte, o fato é consolidado – um número enorme de médicos realmente escolheu cerrar fileiras com o bolsonarismo, e com os profissionais que resolveram surfar essa onda. E, ao invés de ficar acusando a profissão de fascista – uma estratégia com amplo histórico de fracasso em mudar a cabeça das pessoas –, talvez caiba refletir um pouco sobre as razões para isso ter acontecido.
Não nego que haja pessoas que de fato se incomodam com a forma como a evidência científica é tratada. Mas elas me parecem raras o suficiente para os seus votos não elegerem nem o síndico do meu prédio
Não é de hoje que a maioria da classe médica frequenta a direita política – mas, por muito tempo, esse alinhamento era apenas uma tendência alinhada à do estrato social ao qual a profissão pertencia. A posição, porém, parece ter se acirrado a partir da consolidação do SUS e sua lógica multiprofissional – nem todo mundo na classe vê com bons olhos a abundância de profissionais não médicos em posições de poder na saúde pública –, e azedou de vez depois do programa Mais Médicos e dos vetos à Lei do Ato Médico, no governo Dilma, que fizeram com que entidades de classe como o CFM e a AMB (Associação Médica Brasileira) se aproximassem da campanha de Bolsonaro. A pandemia polarizou a classe de vez, e, apesar das posições controversas do ex-presidente terem afastado parte da trupe antipetista, isso não foi suficiente para tirar da ala bolsonarista o controle do CFM.
Parece um engano, porém, atribuir o resultado das eleições a uma questão meramente econômica ou de conveniência. A popularidade adquirida por figuras como Cardoso parece sinalizar a simpatia por um discurso agressivo e sem travas, que remete à definição de que Bolsonaro é popular “não porque fala o que as pessoas querem ouvir, mas porque fala o que as pessoas querem dizer”. E, se vozes como Cardoso dizem o que os médicos querem dizer, cabe refletir sobre de onde vem tamanho ressentimento.
Parece esquisito que a classe médica seja ressentida com a vida – afinal, trata-se da profissão mais bem paga do país, na média. Mas a remuneração médica entrou em tendência de queda na década passada, fenômeno que muitos preveem que vá se acentuar com o aumento expressivo na oferta de cursos de medicina nos últimos anos. Afora isso, a realidade do trabalho médico tem se afastado progressivamente da posição de prestígio de outrora, com o consultório próprio perdendo espaço frente à consolidação do SUS e das grandes operadoras de saúde privada. Para uma classe que estava acostumada com status e privilégios – ou esperava recebê-los ao terminar a faculdade –, o mundo real pode ficar aquém das expectativas, o que talvez coloque parte da classe na categoria daqueles que sentem que sua importância diminuiu nos últimos anos – os ditos “incluídos que perderam” –, proposta por cientistas políticos e pesquisas de opinião como um dos pilares de sustentação do bolsonarismo.
Adicione a isso condições de trabalho frequentemente ruins e o fato de terem de lidar com gente doente todos os dias, e não parece difícil imaginar que muita gente não pareça satisfeita – eu mesmo desertei da profissão há uns bons quinze anos, aliás. Jogue no caldo de cultura arriscar a vida em uma pandemia sob os inúmeros questionamentos da opinião pública acerca dos limites da autonomia médica nos imbróglios políticos sobre tratamento e vacinação na covid-19, e a tempestade está criada. Com isso, alguém que acene com a pauta de valorização e autonomia do médico – que é o que o bolsonarismo médico sistematicamente tem feito – acaba se tornando previsivelmente popular.
Não por acaso, o lado positivo da retórica dos candidatos das chapas “de direita” – que Cardoso também exerce quando não está xingando ninguém – passa quase sempre pela valorização do médico enquanto indivíduo frente aos poderes externos que querem influenciar seu trabalho. Como diz ele na CPI da covid, “é necessário tirar os juízes, políticos e repórteres da sala de emergência e postos de atendimento”. Tudo isso faz eco à promessa de empoderamento individual do discurso antiglobalista de direita – e remete a um tempo em que os médicos realmente eram mais donos de sua própria vida profissional, com menos protocolos, diretrizes e burocracias interferindo em suas condutas. Como diria Donald Trump, make medicine great again.
Imagino que boa parte dos leitores esteja murmurando que isso tudo é mimimi de uma classe privilegiada reclamando de boca cheia. Eles têm direito a essa opinião – e os que não sabem como vão pagar as contas no fim do mês talvez tenham razão em tê-la. Mas não é necessário achar que os médicos são os seres mais injustiçados do mundo para conceber que a insatisfação exista. Podem ser angústias de privilegiados – mas nem por isso deixam de ser angústias. Isso, aliás, me torna cético sobre o discurso que coloca a ascensão do populismo de direita na conta do neoliberalismo e diz que, se resolvêssemos as desigualdades e injustiças induzidas por ele, as coisas tenderiam a se acomodar. Infelizmente, insatisfação e sensação de injustiça são sentimentos facilmente mobilizáveis em qualquer ponto da pirâmide social – até porque, se existe algo garantido na vida, é que lá pelas tantas todo mundo vai perder algo. O que faz com que acabar com a exclusão não seja suficiente para eliminá-los – no dia em que conseguirmos fazer isso, os “incluídos que perderam” seremos todos nós.
E nesses casos a gente tem algumas opções para lidar com o problema. A primeira – popular nas redes sociais – é dizer “hah, white people problems” e desdizer da insatisfação alheia com um argumento do tipo “quem é você pra estar reclamando, eu estudei 10 anos e estou aqui ganhando metade do seu salário”. Que será então desbancado por outra pessoa que diga que “privilegiado é você, que pelo menos estudou”. Para alguém mais dizer “ah, mas você é um homem hétero cis”, e assim por diante. Até que, depois de descer a espiral infinita de formas com que a vida pode ser injusta, a única pessoa que terá autoridade verdadeira para se queixar será alguma pobre alma desprivilegiada que não vai ter acesso à internet para dar sua opinião, encerrando o diálogo.
Outra opção – popular entre as chapas que perderam a eleição do CFM – é ignorar toda a problemática acima, dizer “hah, mas vocês são anticiência” e se declarar vencedor moral da eleição com base no “nós é que somos puros e certos”, geralmente usando palavras de ordem como “ciência”, “democracia” ou “baseado em evidências”. É a forma com que o processo eleitoral foi retratado na imprensa de esquerda, e me parece um esforço vão de se colocar do lado certo da história para o próprio conforto, através de um argumento de autoridade, sem fazer esforço para entender a deserção da classe médica de suas fileiras – que eu diria que tem bem pouco a ver com a ciência ou a falta dela.
Até porque, para a grande maioria das pessoas de ambos os lados do espectro político – médicos inclusos –,“ciência” é só um nome bonito para argumentos que reforçam o que elas já pensam. Quase ninguém é “anticiência” de fato: para a medicina bolsonarista, os negacionistas são os outros, e tudo o que é necessário para isso é uma leitura da evidência científica com um viés no sentido oposto ao do consenso científico vigente. Que figuras como Cardoso sabem articular de forma mais competente, diga-se de passagem, do que a mídia costuma fazer ao arbitrar sobre o tema no sentido contrário. Não nego que haja pessoas que de fato se incomodam com a forma como a evidência científica é tratada, ao invés de usar a palavra como argumento de autoridade para defender seu campo político. Mas elas me parecem raras o suficiente para os seus votos não elegerem nem o síndico do meu prédio.
Então não me parece haver saída para esse imbróglio senão abandonar palavras pouco úteis como “negacionismo” e admitir que a briga nunca foi sobre ciência, e sim sobre as boas e velhas insatisfações humanas. E fazer um esforço para escutá-las, até porque vamos ter que lidar com elas – e com um Conselho Federal de Medicina de viés conservador e corporativista –, pelo menos pelos próximos cinco anos. Isso não significa entregar aos médicos tudo o que eles querem – até porque a expectativa de privilégio de boa parte da classe é irreal – e nem deixar de questionar o que pode ser feito para impor limites ao viés cada vez mais sindical de associações de regulação de classe. Mas envolve escutar os médicos de forma um pouco menos arrogante do que se tem feito.
E eu poderia terminar essa coluna saudando os sessenta e tantos por cento dos médicos paulistas que não votaram na chapa vencedora – e que talvez, com um pouco mais de organização política, consigam um resultado melhor daqui a cinco anos. Mas isso seria mais do mesmo. Ao invés disso, eu prefiro colocar meu chapéu de médico – que raramente uso hoje em dia – para falar na primeira pessoa do plural. E dizer que, concordemos ou não, o CFM nos representa. Literalmente. E, com isso, convido meus colegas a olhar no espelho – ou no imenso arquivo de postagens de Francisco Cardoso, ao seu modo um espelho da classe que o elegeu – e parar para pensar em como acabamos aqui.
Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros
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