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Luiz Augusto Campos

Para onde caminha o debate sobre raça no Brasil?

29 de outubro de 2024

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Se o movimento antirracista brasileiro foi pródigo em colocar as desigualdades raciais na agenda pública de debate, restava enquadrar essa discussão com argumentos, narrativas e conceitos próprios

Nunca se falou tanto de raça no Brasil quanto nos dias atuais. Não custa lembrar que esse tema foi um tabu durante quase todo o século 20. Num país que construiu sua identidade com base no orgulho da mestiçagem e no mito da democracia racial, não havia lugar lógico para a discussão sobre o racismo. Não é gratuito que a primeira lei proibindo práticas discriminatórias no Brasil tenha sido aprovada como resposta a um caso de racismo sofrido por uma estrangeira. Katherine Dunham, uma bailarina estadunidense negra, foi “confundida” com uma “mulher negra qualquer” quando tentava reservar um quarto de hotel no Rio de Janeiro, caso que depois levou à aprovação da Lei Afonso Arinos em 1951. Logo, o antirracismo só se justificava no país como forma de proteção a estrangeiros.

Esse cenário começou lentamente a mudar de figura no fim dos anos 1970, com a reorganização do movimento negro e a abertura do regime político. Entre as décadas de 1980 e 1990, o movimento negro não apenas se institucionalizou, como estabeleceu fortes alianças com outros setores da sociedade, sobretudo, com a academia, a filantropia internacional e a gestão pública. À abertura política, seguiu-se a emergência de pesquisas que buscavam contestar a imagem do Brasil como um paraíso étnico. Munidos de dados oficiais robustos e modelos estatísticos sofisticados, nomes como Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva controlaram o efeito da classe de origem e da educação adquirida nas chances de mobilidade social de brancos e negros, mostrando que estes tinham sistematicamente menos oportunidades que os primeiros.

Apesar de ser branco e reconhecido como um cientista social metódico, Hasenbalg tinha elos fortes como o movimento negro. Sua tese foi dedicada à amiga Beatriz Nascimento e um de seus livros mais vendidos foi escrito em parceria com Lélia Gonzales, ambas lideranças centrais do movimento negro. Na carência de recursos nacionais, essa aliança se beneficiou de financiamentos internacionais, oriundos da Fundação Ford, à época dirigida por brasilianistas estrangeiros como Peter Fry e Edward Telles. Valle Silva, por seu turno, era também funcionário de carreira do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e tinha laços próximos com pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o que foi fundamental para que esses órgãos de Estado incorporassem seus modelos analíticos. Toda uma geração de pesquisadores-gestores foi guiada por essas discussões, a exemplo de nomes como Ricardo Henriques, Sergei Soares, José Luis Petruccelli, Rafael Osório etc. 

No fim dos anos 1970, o movimento negro promoveu inúmeros debates sobre o racismo brasileiro e a situação da população negra no país. No entanto, questões básicas sobre esses temas produziam mais controvérsia do que convergência política. A primeira questão tinha a ver com a natureza do racismo brasileiro e seus efeitos na nossa estrutura social. Uma parte do movimento, de inspiração marxista, ainda conferia lugar central às desigualdades de classe e ao legado da escravidão na conformação das nossas desigualdades. Sem questionar a importância dessas dinâmicas, outra ala tendia a enfatizar o papel do racismo cotidiano na reprodução das desigualdades, ocasionalmente criticando a subestimação da dimensão racial pelo grupo mais centrado na classe. A segunda questão presente nesse momento era de simples formulação, mas de difícil resposta: quem é negro no Brasil? Isto é, num país que elevou a miscigenação ao status de totem, como traçar claramente a linha de cor entre brancos e negros?

A influência dos trabalhos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva na resolução dessas duas questões é notória. A partir dos dados, os dois sociólogos compilaram evidências de que grande parte das desigualdades raciais brasileiras não era explicada pela origem de classe ou pelos efeitos inerciais do passado escravocrata. Há um resíduo estatístico em nossa desigualdade que só pode ser explicado pela existência de práticas sistemáticas de discriminação contra pretos e pardos. E aqui mora a segunda conclusão importante dos autores: em média, as desigualdades nas taxas de mobilidade social de pretos e pardos são menores do que a existente entre esses dois grupos e brancos.

Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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