Coluna
João Paulo Charleaux
Como a imigração pautou e transcendeu a disputa americana
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“Imigração” pode não ter sido o tópico mais importante das eleições presidenciais americanas de 2024, mas foi o que – junto com a economia e a questão da defesa da democracia – dividiu opiniões de democratas e republicanos de maneira mais extremada e, por isso, deve manter-se no topo da agenda pelos próximos anos, tensionando as relações na sociedade, especialmente com a volta de Donald Trump à Casa Branca a partir de 2025.
No discurso republicano, o estrangeiro foi pintado como o inimigo perfeito, que afasta a verdadeira “América” de sua essência. O imigrante foi apresentado ao longo da campanha como um alienígena intrinsecamente mau, um agente externo ameaçador, alguém com “genes ruins”, que rouba empregos, degenera costumes, vende drogas, estupra, mata e chega a comer cães e gatos da população americana, como disse em debate o candidato Trump.
O recurso à ideia de um inimigo externo comum, sobre o qual uma sociedade pode depositar sem censura todas as suas mazelas, vícios e defeitos é uma estratégia bem conhecida. Quanto mais terrível “ele” é, maior a chance de fabricação de um “nós” puro, coeso e amedrontado, disposto a dar carta branca a um líder corajoso o bastante para dedetizar o que é percebido como uma ameaça existencial. A estratégia funciona melhor quando o país está em guerra, é verdade, mas, quando não está, tampouco é difícil inventar uma guerra – basta erguer um muro, mobilizar a polícia e outros corpos armados de segurança, reforçar a fronteira, acender holofotes e, pronto, o inimigo está lá, em algum lugar no deserto, na escuridão, além da linha que não ousamos frequentar.
A questão é que todo mundo nos EUA, com exceção dos indígenas, é estrangeiro em algum ponto. Então, a partir de que momento, a partir de que esquina da história, exatamente, as pessoas “vindas de fora” passaram a ser consideradas uma ameaça? Quando eu ainda era repórter do Nexo, fiz essa pergunta ao historiador e escritor Paul Kramer, especialista em questões migratórias da Universidade Vanderbilt, de Nashville, que me contou sobre “uma antiga tradição americana de declarar a pessoa que fica logo atrás de você ao descer do bote como um imigrante perigoso”.
Era fevereiro de 2018. Trump recém havia completado seu primeiro ano de mandato. Demos risada ao telefone quando Kramer me descreveu essa cena, de um imigrante descendo do barco no litoral de Nova York e dizendo: “hey, cuidado, o cara que vem logo atrás de mim é um imigrante perigoso; não deixe ele entrar”. É algo caricato, mas não irreal, pois boa parte dos eleitores latinos e hispânicos votou em Trump com esse raciocínio. Da última vez que estive em Washington, um taxista etíope incorporou bem esse personagem caricaturizado por Kramer ao me dizer: “Trump é tão americano ou tão estrangeiro quanto eu. Nenhum de nós dois veio dos EUA. Nós chegamos a essa terra. Só chegamos em momentos diferentes”.
João Paulo Charleauxé jornalista, escritor e analista político. Foi repórter especial, editor e correspondente do Nexo em Paris. Trabalhou por sete anos no CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) em cinco diferentes países, cobriu a guerra nas fronteiras de Israel com Gaza e o Líbano, a crise política e humanitária no Haiti e o tsunami no Chile. Pela Cia das Letras, publicou o livro “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História” e prepara um novo livro, sobre “As Regras da Guerra”, mesmo tema de uma série publicada na Folha em 2023-2024. Ao longo dos últimos 25 anos, escreveu no Estadão, no Globo, na Piauí, no UOL e na Carta Capital. Participou como comentarista na CNN e na CBN. Trabalha principalmente com temas ligados ao direito internacional aplicável aos conflitos armados.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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