Coluna

Olavo Amaral

Meus dias de bolsa MacArthur

31 de dezembro de 2024

Temas

Compartilhe

Posso não ser um gênio, mas manter essa coluna foi uma responsabilidade parecida enquanto durou

Ao longo da minha vida profissional, poucas coisas exerceram tanto fascínio sobre mim como as MacArthur Fellowships. Conhecido popularmente como “bolsa dos gênios”, o prêmio concedido pela fundação filantrópica americana oferece 800 mil dólares a pessoas excepcionalmente promissoras em diversos campos para que elas simplesmente façam o que quiserem.

A ausência de qualquer cobrança explícita pode fazer o prêmio parecer caridade, mas eu sempre achei a estratégia genial: se alguém pusesse um dinheiro desse tamanho na minha mão por conta do meu potencial, afinal, eu passaria minha vida inteira sob o peso da responsabilidade de fazer algo relevante, e provavelmente acabaria fazendo. 

Previsivelmente, nunca ganhei o prêmio, seja por falta de sorte ou de genialidade. A segunda opção parece mais provável. E a essa altura da vida, minhas chances de ser reconhecido como um jovem promissor já não são elas mesmas muito promissoras.

Ainda assim, nos idos anos de 2010, quando estava começando minha vida de professor universitário, fiz as contas e cheguei à conclusão de que meu salário agregado do início ao fim da carreira, sem contar a aposentadoria, equivalia a 3,4 bolsas MacArthur. E que aquilo também era, ao seu modo, um investimento para eu fazer o que quisesse.

Vá lá, não era tão “o que quisesse” como uma bolsa MacArthur: o magistério superior, afinal, tem lá suas obrigações, que incluem docência,  gestão e inúmeras outras burocracias que aparecem pelo caminho. Tampouco refiz essas contas em tempos de dólar nas alturas, o que estragaria um pouco do meu otimismo. Ainda assim, sigo acreditando na moral da história: ser professor em uma universidade pública é em grande medida uma posição de liberdade para se fazer aquilo que se acha importante.  

Parte disso é mera consequência da disfunção do serviço público, em que a estabilidade empregatícia promovida pelo Regime Jurídico Único se soma à ausência de controle pela bagunça de gestão. O que permite que, se alguém quiser fazer o mínimo possível para cumprir sua carga de aulas, desaparecer no resto do tempo e seguir ganhando salário de dedicação exclusiva, isso não costume ser difícil.

Dito isso, uma parte dessa liberdade é intencional, dentro da concepção de que conceder autonomia às universidades – e às pessoas dentro delas – para que persigam seus ideais e interesses acadêmicos sem a tutela direta do Estado é um investimento público que vale a pena. Ainda que a ideia pareça revolucionária a ponto de ser meio tresloucada, ela está no cerne do modelo humboldtiano de universidade do século 19, foi estendida ao financiamento científico no século 20 e se tornou corriqueira em diversos países, inclusive no Brasil. Não temos um contrafactual para avaliar sua eficácia, mas dado o papel dominante das universidades na produção científica ao redor do mundo na maior parte das áreas, é difícil não lhe atribuir pelo menos algum grau de sucesso – mesmo que ele não seja pleno.

Posso não ser um gênio, mas manter essa coluna foi uma responsabilidade parecida enquanto durou

E quando olho o meio acadêmico à minha volta nesse início de século 21, duzentos anos depois de Humboldt, duas coisas me chamam atenção. A primeira é que o arcabouço do sistema foi em larga medida preservado: a garantia da liberdade acadêmica ainda está aí para quem queira usá-la. A segunda, porém, é o quanto nós mesmos, seus beneficiários, a perdemos de vista e desaprendemos a lidar com ela.

Pois por mais que o poder público ainda banque a autonomia universitária, pelo menos em países como o Brasil, o sistema acadêmico aprendeu a corroê-la por dentro, inventando um sem-número de competições internas – por financiamento, autoridade ou prestígio –, bem como de métricas de produtividade para resolvê-las e de burocracias para regulamentá-las. Tais rituais consomem boa parte do tempo – e da liberdade – dos cientistas, a ponto de que quase todo mundo se sente sobrecarregado, tolhido e, não infrequentemente, infeliz. O problema é obviamente pior para quem não tem uma posição acadêmica estável, em que os mesmos desafios têm de ser enfrentados sem qualquer garantia que isso vá trazer retorno material a longo prazo. 

E ainda assim, se você tem seu emprego garantido, e o seu ideal de contribuição acadêmica é desses que não precisam de grandes recursos materiais, a liberdade está logo ali, ao alcance da mão. E se o massacre da rotina nos ensinou a não perceber isso, lembrar de exercê-la por vezes requer um empurrãozinho.

Eu ganhei esse empurrão há dois anos, quando me chamaram pra escrever essa coluna no Nexo em uma editoria que estreava.  Em acesso aberto, às custas de filantropia, sem qualquer amarra além de tratar do tema “ciência” e de ter um prazo mensal. Como uma bolsa MacArthur ou um emprego universitário, era alguém oferecendo dinheiro – ainda que em um montante bem menor – para eu pensar em voz alta sobre o que eu achasse importante.  Vinte e oito colunas depois, essa experiência se encerra, junto com a própria Ponto Futuro, já que o financiamento que mantinha a seção se esgotou. 

Não sou a melhor pessoa para julgar o quão bem aproveitei a oportunidade – uma tarefa que deixo ao leitor. Mas o que levo de mais importante da experiência é perceber uma vez mais o quão revolucionário esse modelo é, e o quão importante é que existam espaços como esse. Em que se aposta em alguém e se oferece tempo, dinheiro e visibilidade para que se reflita e  opine com calma e embasamento sobre um tema qualquer.

É óbvio que a opinião do parágrafo acima está carregada do conflito de interesse de ter tido o privilégio de ganhar essa plataforma. E quem apontar que ele é consequência de outros privilégios amealhados ao longo da vida – ou mesmo antes dela – vai ter toda razão.  Não há dúvidas de que o jornalismo tradicional é uma instituição de elite – e o financiamento filantrópico torna isso ainda mais evidente. Por outro lado, a democratização radical das opiniões pelas redes sociais tem me convencido de que filtros institucionais são importantes – e que a alternativa a eles é uma batalha selvagem por atenção que acaba por recompensar o imediatismo, a estridência e o tribalismo muito mais do que deveria. 

Então sigo achando importante que a gente escolha vozes – idealmente tão diversas quanto possível – para falarem de fora do burburinho. Nesse sentido, eu lamento que não haja mais como manter esse modelo por aqui, mesmo que fosse para mais alguém que não eu seguir escrevendo em domínio público, com liberdade e espaço garantidos, e ganhar algum retorno com isso.

Eu gostaria de ter alguma solução mágica para sustentar o formato, mas não tenho. As redes sociais certamente não farão isso por você – pelo menos não se você depender da sua efêmera e vingativa economia de atenção para monetizar seu esforço. Tentativas de fazer jornalismo profissional em acesso aberto dependem de doações ou publicidade, que acabam por criar seus conflitos de interesses, e nem sempre vão criar um ambiente tão livre quanto o que encontrei por aqui. Na ausência delas, restam os paywalls, que parecem intrinsecamente errados, mas como a democracia, talvez sejam o pior modelo exceto por todos os outros.

Mas se não sei resolver o problema em nível sistêmico, pelo menos no pessoal ainda posso aproveitar minha outra bolsa MacArthur tupiniquim. Pode ser um bug do serviço público que ninguém na minha universidade controle o que eu faço na maior parte do tempo. Mas se o bug existe, minha obrigação é me aproveitar dele  para transformar um sistema disfuncional – aquele em que o público paga alguém para fazer o que acha importante sem poder cobrar qualquer retorno – naquele que eu gostaria que existisse – aquele em que o público confia em alguém para fazer o que acha importante sem precisar cobrá-lo.

E se ambos parecem ser praticamente o mesmo sistema, isso não é por acaso. O equilíbrio entre a liberdade e a baderna é tênue, e no nível sistêmico, eu novamente não tenho boas soluções para resolver as inevitáveis contradições entre autonomia e responsabilidade. Mas no nível pessoal, o que posso fazer é fazer o melhor que posso. O que é uma responsabilidade enorme quando cabe a você mesmo colocar os sarrafos. E meu emprego faz com que eu deva a duzentos milhões de pessoas que eles sejam altos, mesmo que meus editores por aqui parem de me cobrar. 

Em suma, ainda que essa coluna esteja chegando ao fim, algo parecido com ela deve aparecer em algum lugar aberto ao público mais cedo ou mais tarde. Dessa vez, graças aos seus impostos. E eu ao menos pretendo continuar pagando os meus, para que outras vozes possam seguir escrevendo a fundo perdido por aí. Por ora, sigo aqui no Nexo como assinante, até que a gente encontre um modelo melhor para conversar entre nós.

Olavo Amaralé médico, escritor e professor da UFRJ. Foi neurocientista por duas décadas e hoje se dedica à promoção de uma ciência mais aberta e reprodutível. Coordena a Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, uma replicação multicêntrica de experimentos da ciência biomédica brasileira, e o No-Budget Science, um coletivo para catalisar projetos dedicados a construir uma ciência melhor. Como escritor, é autor de Dicionário de Línguas Imaginárias e Correnteza e Escombros

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas