Temas
Compartilhe
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, levantou a voz no domingo (26) para criticar o presidente dos EUA, Donald Trump, na internet. Na troca de farpas, Petro reavivou um antigo discurso – comum entre as esquerdas – de que a América Latina um dia vai se erguer, unida, contra o assédio americano.
No post dirigido a Trump, Petro evocou heróis da história e da literatura colombiana. Misturou fantasia e realidade, fez digressões carregadas de idealizações morais – a maioria baseada em estereótipos e mitos sobre a boa índole e a “doçura” inatas dos latino-americanos – para criticar o plano de deportação de cidadãos colombianos que estão sendo expulsos dos EUA com algemas nas mãos e correntes nos pés, a bordo de aeronaves militares.
Em vez de publicar um textão inebriado nas redes, Petro poderia ter tratado da questão por canais diplomáticos, como acertadamente preferiu fazer o Itamaraty. E ainda que decidisse ir em frente e comprar a briga em público, Petro poderia ter falado apenas em nome de seu próprio governo. Mas, em vez disso, chegou a dizer que, se for morto, como Salvador Allende, no Chile de 1973, “responderão as Américas e a humanidade” em uníssono. Será?
Foi bem longe, o presidente colombiano, agitando na mão o que parecia ser uma procuração que ninguém na região tinha lhe dado. Talvez, ao fim do longo discurso, Petro esperasse receber a solidariedade dos demais presidentes, que responderiam ao chamado dele com uma sublevação moralmente justa contra os EUA, mas o que se seguiu foi um traque: a Colômbia recuou e disse que voltará a aceitar seus cidadãos deportados em aeronaves militares. Restou à galáxia de perfis e publicações de esquerda distorcer os fatos para dizer que foi Petro quem venceu a contenda.
Uma América Latina unida contra os EUA é um sonho, como tantos outros que a geração de Petro acalentou. A realidade, no entanto, aponta em direção diversa: não há nenhum sinal de coesão transcendente entre os governos latino-americanos de agora, como tampouco houve no passado, com exceção talvez do parênteses que fez florescer a união algo canhestra entre os presidentes que, puxados pelo venezuelano Hugo Chávez, chamavam a si mesmos de bolivarianos, na primeira década dos anos 2000.
Se a Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) ainda está viva, ninguém notou. A Unasul (União de Nações Sul-Americanas) definhou de inanição. O Mercosul balança cada vez que o presidente argentino, Javier Milei, dá um grito. Todas essas são instâncias interestatais que algum dia surgiram com a promessa que Petro ressuscitou: a de uma América Latina digna da imagem do “guerreiro que cavalgava nossas terras gritando liberdade, e que se chama (Simon) Bolívar”, prócer da descolonização da América Espanhola, no século 19.
Em breve, a jactância de Petro dará lugar às articulações diplomáticas de costume, que são mais chatas de acompanhar. Os posts inflamados darão vez às declarações conjuntas, feitas em cúpulas e em outras modalidades de sessões enfadonhas – ainda mais enfadonhas depois da pandemia, pois se tornaram virtuais –, nas quais os diplomatas vão costurar textos e os presidentes, fazer discursos que procurem mesclar acenos às suas bases político-ideológicas com contenção de danos na relação comercial com os EUA.
A próxima parada seria a reunião da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), que ocorreria na quinta-feira (30). O encontro tinha sido convocado pela presidente de Honduras, Xiomara Castro de Zelaya, que ocupa também a Presidência pro-tempore do grupo, com o objetivo de alinhar a posição de seus membros contra a ofensiva de Trump. Mas seu cancelamento, na véspera, expõe a quimera de uma região que tem presidentes em lados tão opostos quanto Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, e Milei, na Argentina.
A correlação de forças é desproporcional e a região tem muito pouco o que barganhar com os EUA, que é o maior investidor isolado em muitos desses países, incluindo o Brasil. Além do mais, cada um dos países governados por essa esquerda que se opõe a Trump tem dentro de si uma elite econômica que depende dos EUA como destino de exportações e de viagens pessoais. Enquanto os empresários latino-americanos não toparem trocar a Disney por algum parque temático em Pequim, os governos da região estarão com as opções restritas na hora de confrontar Trump com tarifaços e outros tiros no pé.
Gratuita, com os fatos mais importantes do dia para você
João Paulo Charleauxé jornalista, escritor e analista político. Foi repórter especial, editor e correspondente do Nexo em Paris. Trabalhou por sete anos no CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) em cinco diferentes países, cobriu a guerra nas fronteiras de Israel com Gaza e o Líbano, a crise política e humanitária no Haiti e o tsunami no Chile. Pela Cia das Letras, publicou o livro “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História” e prepara um novo livro, sobre “As Regras da Guerra”, mesmo tema de uma série publicada na Folha em 2023-2024. Ao longo dos últimos 25 anos, escreveu no Estadão, no Globo, na Piauí, no UOL e na Carta Capital. Participou como comentarista na CNN e na CBN. Trabalha principalmente com temas ligados ao direito internacional aplicável aos conflitos armados.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
Navegue por temas